Guilhermina Suggia, a portuguesa que arrebatou o panorama da música erudita

por Lucas Brandão,    11 Novembro, 2020
Guilhermina Suggia, a portuguesa que arrebatou o panorama da música erudita
Gravura de Suggia (Alfred Eckstein, Berlim, s.d.) – Espólio C.M.P.
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Se falamos do mundo da música em Portugal, por norma, falamos dos últimos 50 anos. Pouco é discutido sobre o que se fazia para trás desse período de tempo. Porém, havia portugueses diretamente envolvidos no panorama da música erudita, o género que, então, era o mais forte e presente. Para além de portugueses, também portuguesas, o que era algo de realmente espantoso para uma sociedade ainda com grande distinção entre o homem e a mulher. Assim foi a vida e a obra de Guilhermina Suggia, natural do Porto, que, com o seu violoncelo, correu uma série de palcos no estrangeiro e se tornou, à data, numa das mais virtuosas intérpretes desse instrumento. Não é por acaso que a Casa da Música tem, como nome da sua principal sala, o nome desta artista.

Guilhermina Augusta Xavier de Medin Suggia nasceu na freguesia de São Nicolau, no coração da cidade do Porto, a 27 de junho de 1885. Os seus pais, Augusto Jorge de Medin Suggia e Elisa Augusta Xavier, eram lisboetas, sendo que o seu pai era violoncelista no Real Teatro de São Carlos, depois de ter sido aluno no Conservatório de Música, em Lisboa. A mudança para o Porto, nomeadamente para Matosinhos, veio após um convite feito a este para lecionar nas escolas associadas à Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos. Guilhermina seria a irmã mais nova de Virgínia, que nasceu, também, no Porto. Pouco tempo depois das filhas nascerem, mudaram-se da sua casa perto da Ribeira do Porto para uma residência em Matosinhos, na Rua do Godinho.

Guilhermina viria a inspirar-se no seu pai, sendo que, apenas com cinco anos, começou a aprender com ele a tocar o violoncelo. Por seu lado, a sua irmã, Virgínia aprendeu a tocar piano, pelo que, na infância de ambas, atuavam em sessões públicas, como na Assembleia de Matosinhos, no Clube da Foz ou no Clube de Leça. Porém, Guilhermina tinha um instinto perfecionista, que a levava a estudar tudo com abundância e com minúcia orientada por ideais de perfeição artística e musical, tanto que as notas eram já suas amigas, bem antes do alfabeto. O talento era tal que o próprio Visconde de Villar d’Allen, um dos muitos convidados pela família a assistir às proezas da pequena Guilhermina, encomendou um violoncelo proporcional à sua altura, já que aquele que tocava era do seu pai, bem mais robusto.

Aos 13 anos de idade, Guilhermina era já violoncelista principal da Orquestra do Orpheon Portuense, depois de algum tempo a atuar em vários eventos na cidade do Porto e com o quarteto de cordas do violinista Bernardo Moreira de Sá, o fundador desse Orpheon, onde chegou a liderar o grupo de violoncelistas. Do outro lado do Douro, corria o verão de 1898 e, no Casino de Espinho, o violoncelista catalão Pau Casals atuava e mostrava, semanalmente, todos os seus talentos por lá. Casals que, no final da sua vida, em 1973, seria considerado um dos melhores de todos os tempos com o seu instrumento e até condecorado pela presidência dos Estados Unidos, dez anos antes. O pai de Guilhermina, Augusto Suggia, levou-a ao Casino para ouvir Casals e para conversar com ele, por intermédio de Moreira de Sá. Casals convidou Guilhermina a tocar e ficou fascinado, partindo daí o despertar de uma longa relação de mestre-aprendiz entre Casals e Guilhermina, com o primeiro a estar agradavelmente surpreendido com os seus talentos. Espinho seria, assim, um lugar de formação que a impulsionaria, mais tarde, a ir para o estrangeiro. Aos 15 anos, Guilhermina, ao lado da sua irmã, Virgínia, atuou no Palácio das Necessidades para a família real, depois de algumas outras atuações na cidade de Lisboa. A sua ambição já ganhava voz, ao dizer à rainha que desejava conhecer mais sobre música no estrangeiro.

Assenta em Paris no ano de 1906 e volta a estar com Pau Casals, com quem viria a desenvolver uma relação de trabalho e até uma paixão; ele que a havia visitado enquanto estava em Leipzig. Viviam juntos numa zona de grande confraternização entre artistas e filósofos, na Villa Molitor, onde davam concertos a essas elites culturais, e eram destacados regularmente na revista da especialidade, como a melhor dupla de violoncelistas de então. Viajaram bastante e atuaram em proporção, muitas vezes com Casals como maestro e Suggia como intérprete. Porém, ao final de sete anos, o casal separar-se-ia e Suggia, após uma breve passagem pela casa da sua irmã, naquela mesma cidade – abdicara do seu talento em prol da vida familiar – seguiria para Londres.

Este era, à data, o novo pólo centralizador da música, e atuou com a Royal Philharmonic Society e com a London Symphony Orchestra, para além de encher o palco do Royal Albert Hall e do Wigmore Hall. Conviveu de perto com o grupo de intelectuais The Bloomsbury Group, entre os quais se integrava a autora Virginia Woolf. Chegou até a ser pintada pelo galês Augustus John, enquanto ela tocava uma peça de Johann Sebastian Bach, compositor que diziam que ela tinha reinventado com as suas deleitosas interpretações. De igual modo, conhece sir Eduard Hudson, que lhe pretendia oferecer um castelo, o de Lindisfarne, assim como o violoncelo Montagnana, com o qual queria que ela atuasse nesse castelo. Desejava casar com ela, embora o enlance não se formalizasse e o castelo, futuro monumento nacional, fosse devolvido por Suggia ao seu pretendente. Porém, a sala onde chegou a atuar ficou musealizada, com a própria presença de um violoncelo, que simboliza a sua presença. Como artista, é alguém sensível ao público, fazendo-lhes, em muitas ocasiões, a vontade de repetir os concertos que havia dado. A sua graciosidade e imponência levam a uma aclamação que ganha ruído e prestígio na própria imprensa especializada, que não a leva, contudo, a esquecer-se de onde partiu: a cidade do Porto.

Regressa de forma intermitente em 1924, quando compra uma casa na Rua da Alegria, aproximando-se, de novo, dos seus pais. Regressa com os “inglesismos” que a alta sociedade britânica importou para o Porto, tanto no sentido de humor, como nos costumes. Porém, era alguém que se habituara a ser independente, conduzindo o seu próprio carro e praticando vários desportos, como o remo, o ténis e a natação. Casar-se-ia, em 1927, com o radiologista José Casimiro Carteado Mena, que conheceu no Grande Hotel do Porto, numa fase em que a sua mãe estava doente, vivendo numa outra casa nessa mesma Rua da Alegria. Um dos padrinhos de casamento seria o famoso artista portuense, o escultor António Teixeira Lopes. No entanto, só assentaria já na década seguinte, aproximando-se daqueles que se formavam e que por cá atuavam, colaborando também em vários eventos humanitários, numa fase em que a Guerra Mundial era uma realidade. Deu mais atenção ao ensino, dando aulas aos ex-estudantes do seu pai, que havia falecido entretanto, e apoiando mais alguns que iam surgindo.

Entretanto, seria, em 1937, agraciada com o Grau de Comendadora da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, no ano seguinte com a Medalha de Ouro da cidade do Porto e, em 1944, com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Cristo. Percorreu todo o país, desde Viana do Castelo a Lisboa, e conhece o empresário António Madeira, que ajudaria na fundação do Círculo de Cultura Musical de Viseu, no ano de 1946, onde acolheu diversas orquestras de grande fama. No âmbito do Conservatório de Música do Porto, ajuda a sua diretora, Maria Adelaide de Freitas Gonçalves a criar a Orquestra Sinfónica do Conservatório, integrando os seus alunos finalistas. Na sua primeira apresentação, em junho de 1948, no Rivoli, atuaria como solista.

Um ano depois, forma o Trio do Porto, com o violinista Henri Mouton e o violetista François Broos. No entanto, era já acometida por uma doença, que a condicionou nas suas performances, sendo a última delas a 31 de maio de 1950, no Teatro Aveirense, num recital em que foi acompanhada pela diretora do Conservatório do Porto. No anterior, tinha feito a sua última grande aparição num palco internacional, em Edimburgo, com a BBC Scottish Symphony Orchestra. Pouco tempo depois, iria, pela última vez, a Londres, efetuar uma cirurgia, onde foi muito acarinhada e onde foi até saudada pelo Rei de Inglaterra, Jorge VI. Faleceria no mês seguinte, a 30 de julho de 1950, na sua casa na Rua da Alegria, no Porto, ficando por se concretizar a sua ambição de atuar nos Estados Unidos.

Morreu sozinha, dado que a sua irmã morreria em 1947 e o marido de Guilhermina dois anos depois. No seu testamento, vendeu vários dos seus violoncelos, entre os quais o seu Stradivarius e o seu Montagnana, tendo os seus proveitos sido direcionados para a instituição de prémios anuais a atribuir aos melhores alunos de violoncelo do Conservatório do Porto, mas também da própria Royal Academy of Music, embora este, atualmente, já extinto. Parte significativa do seu espólio pessoal encontra-se, ainda hoje, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos, onde se encontra uma série de documentação que inclui manuscritos, cartazes, correspondência, fotografias, certificados e recortes de jornais ou revistas. De igual modo, legou os seus restantes cinco violoncelos a ex-alunas e grande parte do seu espólio musical, desde partituras a livros, ao Conservatório do Porto, de acesso livre por parte dos alunos e professores da instituição.

O seu papel no mundo da música foi algo de absolutamente pioneiro. Para além de aperfeiçoar o seu domínio no aspeto da técnica e da sonoridade do violoncelo, abriu as portas para que mais mulheres pudessem entrar neste mundo, contornando eventuais constrangimentos físicos no manejamento do instrumento, para além de, então, ser considerado inapropriado para as mulheres o uso do violoncelo. Era alguém que, segundo a crítica, conseguia mesmo imprimir a sua vivacidade para a forma como o utilizava. Suggia adorava o violoncelo, já que, para além de conseguir suster notas baixas por um largo período e de permitir o cantar de melodias em diferentes registos, na sua plenitude técnica, abria portas para que as ideias do compositor pudessem ser devidamente interpretadas e entoadas. Para além disso, sentia-se confortável, a solo ou com orquestra, a tocar peças de diferentes nomes, como de Antonin Dvorak, Josep Haydn ou Robert Schumann, para além das suas referências Johann Sebastian Bach, Ludwig van Beethoven ou Franz Schubert.

Guilhermina Suggia foi uma das maiores violoncelistas de todos os tempos, tendo, para isso, que quebrar uma série de barreiras: sociais, culturais e artísticas. Superou o estigma do género para se afirmar, no mundo da música erudita, como uma das mais capazes intérpretes dos seus tempos, afirmando-se por um leque de concertos de grande êxito. Foi ganhando o seu espaço numa sociedade ainda muito dominada pelos convencionalismos sociais, que acabaram por não oferecer resistência à sua meteórica ascensão no espaço da música. O seu talento e a sua avidez por mais e melhor acabou por a impulsionar a uma carreira que, embora algo breve, serve de referência e de inspiração para quem aspira a ir longe, a partir de solo português, ao sabor da música.

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