Os fluxos da consciência de Virginia Woolf

por Lucas Brandão,    25 Janeiro, 2017
Os fluxos da consciência de Virginia Woolf
Pintura da autoria de Vanessa Bell, irmã de Virginia Woolf.
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Virginia Woolf foi um dos rostos do modernismo que pontificou na abertura do século XX. De ideais vincados e com uma postura crítica bem ativa, a britânica deixou por escrito tudo pelo qual lutou e naquilo em que acreditou, tanto de forma lírica como em ensaios e cartas. A sua paixão pela literatura começou precoce e nunca se esvaiu, bebendo da literatura russa e francesa desde cedo. A inglesa acabou vítima da negligência médica predominante no seu tempo quanto às doenças psiquiátricas e viveu uma vida de altos e baixos anímicos e psicológicos. Essa instabilidade fragilizou-a e a sua vida acabou no rio inglês Ouse aos 59 anos, em tempos de Segunda Guerra Mundial, altura em que a escritora não suportava mais os extremos de uma sociedade que sempre condenou. No entanto, foi o génio da sua personalidade e do seu pensamento que acabaram refletidos nas gerações vindouras e que inspiraram uma série de novos agentes literários, com alguns deles a deterem a mesma vocação crítica. Paralela e implicitamente, acabou por libertar o feminismo do anonimato, levando-o a cantos nunca antes equacionados.

A autora nasceu a 25 de janeiro de 1882 e foi educada de forma abastada, tendo como grande influência profissional o seu pai, Sir Leslie Stephen, que era escritor, ensaísta e editor. Com ele, a jovem frequentou prematuramente o ambiente literário e conviveu com a elite intelectual e artística britânica dos finais do século XIX. A sua educação foi bastante particular, tendo sido lecionada por docentes e até pelo seu pai em sessões individuais, e as suas tardes eram passadas na biblioteca pessoal do seu progenitor. No entanto, a sua condição psicológica começou a sofrer as primeiras atribulações após a morte da sua mãe. Tinha ela 13 anos e um horizonte de sonhos infindável. Desde então, as suas visões começaram a ser norteadas pela ansiedade e pelo pânico de viver, de sentir, de sofrer. Tudo isto se refletiu num trabalho que, embora brilhante e encantador, nunca mascarou a névoa dos seus tormentos.

Foi em 1900, aos 18 anos, que Virginia arrancou a sua carreira com um artigo jornalístico num periódico de literatura. Poucos anos depois, a autora juntou-se ao Grupo de Bloomsbury, uma associação informal de partilha de conceitos sobre a estética, a sociedade, a economia e a literatura, originando posturas inovadoras quanto ao feminismo e à sexualidade. Neste grupo integrava-se também o seu marido Leonard, o economicista John Maynard Keynes, o pintor Roger Fry, entre outros. Este grupo, que se opunha ao romantismo artístico da Era Vitoriana, perdurou até ao final da Segunda Guerra Mundial, ocaso que Woolf não chegaria a presenciar. O primeiro romance da britânica seria denominado “The Voyage Out” (1915), que reportava a aventura da jovem Rachel Vinrage numa viagem no navio do seu pai. Essa aventura ia para além do tangível e explorava uma travessia íntima com contornos mitológicos, reforçando o poder da juventude na expansão dos limites do sonho e da vida. O mix de personagens (com algumas delas a serem transversais em outras obras da sua autoria) apresentado pela autora satirizava o reinado medíocre do monarca Eduardo VII e à sociedade de então.

A inglesa prosseguiu na escrita, tanto na vertente romanesca como em termos de ensaios, granjeando sucesso em ambos os campos. Os traços do modernismo que vigorava no início do século eram notórios nos seus trabalhos, estando entre eles a consideração das linhas estruturais do pensamento humano e a rutura com as correntes predecessoras, alicerçando os seus trabalhos com o recurso a figuras de estilo socialmente corrosivas e a apologia do progresso social. No entanto, o conceito que mais se fez denotar na sua obra foi o fluxo de  consciência, destinado a expor a corrente complexa do pensamento humano e as associações de ideias e de impressões inerentes a este. A autora rebusca estes valores da literatura russa que tanto apreciou e inspirou autores sucessivos, tais como Simone de Beauvoir, na aplicação destas perspetivas nas suas criações textuais. No entanto, a intensidade lírica e o virtuosismo estilístico que as suas linhas transmitem proporcionam ao leitor uma experiência quase única, desencadeando sensações auditivas e visuais como poucos. Este experimentalismo literário e espontâneo é um recurso que fez da inglesa uma mulher de armas únicas numa visão cultural.

  “O poeta entrega-nos a sua essência, mas a prosa toma a forma de todo o corpo e de toda a mente.

Virginia Woolf sobre a prosa.

Esta visão poética é corroborada em “Mrs. Dalloway” (1925), onde a superficialidade e a banalidade dos pormenores cénicos acabam enlevados. No caso desta obra, a protagonista, uma mulher de meia-idade, organiza uma festa e, nos seus preparativos, acaba por revisitar o passado através do fluxo de consciência. Virginia acaba por apagar as linhas diferenciadoras entre o discurso direto e indireto, entrando a fundo no mundo da personagem e quase que fazendo esquecer o momento presente. A outra personagem em destaque é a de Septimus Smith, um veterano da Primeira Guerra Mundial que padece de stress pós-traumático e que se depara regularmente com alucinações de caráter muito familiar. O traço analítico da autora quanto às questões das doenças mentais é inovador e distinto, substancialmente graças ao paralelismo possível de se estabelecer entre a autora e as vicissitudes vivenciadas. É esta posição de crítica que molda o seu estilo, para além dos pormenores subtis que revela quanto à posição da mulher num contexto social e à homossexualidade, questões que lhe são bastante significativas (a autora era bissexual assumida).

Cada um tem o seu passado fechado em si, tal como um livro que se conhece de cor, livro de que os amigos apenas levam o título.

Virginia Woolf sobre o passado.

Entre outras obras em que as temáticas debatidas nas obras supramencionadas são consolidadas, existe uma que se destaca das demais pelos contornos críticos, pela profundidade das ideias e pelo método de exposição das mesmas. É ela “To the Lighthouse” (1927). Quanto a “Orlando” (1928), “The Waves” (1931), “Flush: A Biography” (1933) e “Between the Acts” (1941), importa reforçar o peso da discussão da transformação da vida através da arte, a ambivalência da orientação sexual e a consideração dos limites do tempo e da vida, não passando longe do existencialismo literário. Também não é imune a análise a vertente social, em que a forma de se viver nas cidades é criticada pela falta de naturalidade. A componente estética da sua escrita manteve-se intacta, reforçando o pendor simbolista e imaginativo dos elementos constituintes dos seus romances e refrescando a monotonia que poderia advir da discussão exaustiva dos problemas sociais.

Entrando assim em “To the Lighthouse”, a obra retrata uma família ansiosa por visitar um farol e as tensões provenientes da ansiedade dessa visita. Um ponto interessante é também a análise dos constrangimentos associados à criação artística da pintora Lily Briscoe, estando estes ligados à instabilidade familiar. Esta instabilidade é alimentada pelas turbulências das massas durante a guerra e, a partir disto, também os vínculos emocionais são alvo de reflexão por parte da autora, para além da passagem do tempo e da submissão da força emocional da mulher à sociedade. Neste conto, o modo de escrita é fortemente pontificado pela descrição e pelos pensamentos, tratando-se de uma obra substancialmente introspetiva.

As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de reflectirem uma imagem do homem duas vezes maior que o natural.

Virginia Woolf sobre as mulheres.

Virginia Woolf foi uma escritora diferente, arrojada para a sua época e com uma consciência social bastante desperta. Expondo as fragilidades da posição feminina contemporânea a si, a autora gerou também controvérsia por emitir a sua orientação sexual sem tabus e pela correlação que muitos estabeleciam entre a sua condição mental e a obra produzida. O seu antissemitismo assumido não ajudou a que se suavizasse a polémica, descrevendo-os muitas vezes nos seus romances como indivíduos fisicamente repulsivos e sujos. No entanto, nenhum destes pormenores beliscou o talento literário que se lhe pode reconhecer, tanto numa perspetiva expositiva como estilística.

A fusão destas duas facetas valeu-lhe o epíteto de uma das melhores escritoras líricas da literatura e um lugar que nunca deixará de ser seu. Tanto nos ensaios como nos romances nunca deixou de denunciar as desigualdades de género e de discutir o futuro da mulher nas gerações vindouras. Foi esta confrontação despojada de preconceitos que abriu as portas do movimento feminista. A britânica, demasiado preocupada com a sua estabilidade interior, nunca se apercebeu da sua grandeza e da sua preponderância literária e pessoal. As suas preocupações foram as nossas e é nessa convergência que se enobrecem, para além dos nomes, as almas.

Virginia, com a mente palpitante, permitiu que o seu coração fosse triunfante. A maior vitória da sua obra foi a vitória daqueles que questionam aquilo que lhes afronta. A maior vitória foi a vitória da sociedade, aquela que vê os seus estereótipos com crescente desprezo e divergência. Virginia Woolf, na plenitude da sua condição de humana, fez-nos ganhar, fez-nos pensar, fez-nos ser humanos com mais gosto do que nunca.

Uma paixão tão completamente centrada em si recusa o resto do mundo tal como a água límpida e calma filtra todas as matérias estranhas.”

Virginia Woolf em “The Wolves” (1931)

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