A herança do irreverente Jean-Michel Basquiat

por Lucas Brandão,    25 Novembro, 2017
A herança do irreverente Jean-Michel Basquiat
“Philistines” (1982), de Jean-Michel Basquiat
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Jean-Michel Basquiat permanece como um dos rostos da arte urbana mais redescobertos dos passados anos, subsistindo uma aura de enfant terrible, que se proliferou para lá das paredes que, usualmente, povoava com as suas criações. A música, o cinema, e as demais formas de expressão artística deixam ramificar o legado inestimável e imensurável do artista que brilhou na cidade de Nova Iorque, com a literatura a cimentar o seu legado na história da arte. Perante mensagens subversivas, e um conteúdo rico em referências e em simbolismos de ampla perceção, os versos e os gestos da criatividade humana conheceram um alvor diferente, de sangue mais pulsante na identidade asseverada.

Nascido no ano de 1960, viu a sua vida acabar em 1988, antes de fazer 28 anos, vítima da sua pior amiga de longa data, a droga. Muitas das obras ficaram na exclusividade de muitos dos colecionadores a quem o pintor vendeu os trabalhos, embora outras tantas tenham-se tornando anónimas, por nunca terem chegado àqueles que pagaram por elas. A juntar a isto, não havia pago impostos durante 3 anos, facto que pode ter obstado à normal comercialização dessas. Não obstante, Basquiat nunca deixou de ser um bastião daquilo que é a arte das profundezas das urbes, nomeadamente das ruas.

Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat. Fotografia de Richard Drew/AP/Shutterstock

De origem haitiana, foi cedo que chegou a Nova Iorque, onde se firmou como um dos principais manifestadores expressivos dos sentimentos e pensamentos das classes menos favorecidas, tanto social como financeiramente. O seu legado permanece enriquecido e reenquadrado em vários documentários televisivos, para além de um filme dedicado à própria personalidade do pintor. “Basquiat”, datado de 1996, foi realizado pelo também pintor e neoexpressionista Julian Schnabel, e contou com diversas interpretações de relevo, com Jeffrey Wright a representar Basquiat, David Bowie o pintor Andy Warhol, para além de demais participações, como as de Gary Oldman, Dennis Hopper e de Christopher Walken. Em 2010, através da amiga do artista Tamra Davis, foi lançado o documentário “Jean-Michel Basquiat: The Radiant Child”, um trabalho que valorizou o previamente conhecido e revelou novas facetas, consumadas por entrevistas utilizadas no mesmo; e que se intitula de “The Radiant Child” após uma menção numa revista, que fez perdurar tal alcunha para o artista.

No coração da cidade de Nova Iorque, onde o norte-americano arrecadou toda a fama do seu trabalho, situa-se, também, a sua antiga residência e estúdio, que é reconhecida, nos dias de hoje, através de uma placa assinaladora do passado daquele espaço. De igual forma, não cessou de surgir como um ícone dessa expressão cultural, com as suas pinturas a ainda darem lugar a uma produção numerosa de peças de roupa, e que incorporam as coleções de arte de vários nomes sonantes da atualidade, como Johnny Depp ou do cantor Jay-Z, também ele inspirado por Basquiat nas suas músicas, e da cantora Madonna, ex-namorada do artista.

Para além disso, ainda recolhe o apreço do também ator Leonardo Di Caprio, e do rapper A$AP Rocky, entre outros nomes de destaque da indústria cinematográfica e da indústria musical. A sua rentabilidade chegou à Reebok, conceituada marca de roupa, que, em 2009, produziu e vendeu, com a liberdade de direção criativa do rapper Swizz Beatz, uma coleção com vários dos seus trabalhos artísticos nas peças constituintes. Este chegaria a ser comparado ao próprio autor das obras, pela paixão e devoção que incutia nos seus trabalhos musicais, catapultando-se numa juventude calorosa e ativa. À imagem da Reebok, também a Supreme (2013) e a Uniqlo (2016) desenvolveram coleções desse tipo.

Aliás, é precisamente na música que surge como referência assídua, em especial no rap norte-americano, inspiração para muito dos mais experientes e dos emergentes músicos do género. Com grandes raízes nos subúrbios das grandes cidades do país, em especial no seio das camadas historicamente segregadas, esta música conhece, na figura refulgente e garrida de Basquiat, um esteio da sua afirmação, capaz de os promover a palcos nunca antes equacionados. Grande parte do seu trabalho seria, desta feita, corroborado por grupos emergentes, como os N.W.A. e os Public Enemy.

Nesta orla de inspiração, pontificaram os graffitis efetuados no início da carreira do artista, com a célebre referência SAMO – concebida como aquilo que era “Same Old” – ao lado do amigo Al Diaz, consagrando os primeiros traços de contestação ao status quo social. Esta oposição ao sistema também serviu de mote para outros artistas urbanos, que se cruzam e cruzaram com rappers, no que toca às preocupações e necessidades de expressão. Aliás, o próprio trabalho musical de Basquiat serviu para comungar algo mais desses dois mundos, em especial “Beat Bop” (1983), do qual foi produtor musical e da capa do trabalho, reunindo o apreço dos futuros Beastie Boys e Cypress Hill.

Postumamente, já no século XXI, seria nomeado em várias músicas de referências do rap, tais como Mobb Deep (“Havoc”, 2001), Jay-Z (“Grammy Family Freestyle”, 2006, que faz menção à obra “Charles The First” (1982), “Ain’t I”, 2008, e, com Kanye West, “Illest Motherfucker Alive”, “That’s My Bitch”, 2011, e o videoclip de “4:44”, de 2017), Nas (“Land of Promise”, 2010), Busta Rhymes (“MTV Cribs”, 2012). O álbum “Love Lockdown” (2008), de Kanye West, conforme o próprio apontou, em especial a música homónima, recebeu várias influências visuais e sensoriais daquilo que foi o trabalho do artista. Rick Ross, numa das suas inúmeras tatuagens, tem, na sua coxa, um retrato deste, valorizando a sua identidade artística.

O documentário “Downtown 81” (2001), da direção de Steve Brown, e que retrata a subcultura de Manhattan, na qual nasceu e se ambientou Basquiat, transporta uma parecença física entre este e Kid Cudi, usando segmentos em que o primeiro apareça ao som de “Ghost”, canção do segundo. Um dos trabalhos mais recorrentemente usados, para uso em artigos e álbuns, seria o famoso poster que protagoniza com Andy Warhol, numa espécie de promoção de um combate de boxe entre ambos, datado de 1985, e usado na antecipação do documentário de 2012, supramencionado.

Em leilões da especialidade, os trabalhos mais incipientes do pintor não deixam de ser arrebatados por quantias exorbitantes, ultrapassando os 100 milhões de dólares. Uma das promoções destes leilões, feita pela Christie’s, contou com o testemunho do músico Macklemore, que não escondeu a pureza que sentia nas criações dele. Os museus nova-iorquinos, para além de eventuais outros de origem norte-americana, e até outros internacionais, permanecem como grandes dínamos promotores da arte de Basquiat, exibindo diferentes trabalhos da sua autoria. Em 2005, no Brooklyn Museum, a voz do músico Wyclef Jean, membro dos The Fugees, foi a responsável por uma visita auditiva naquilo que foi uma das retrospetivas do trabalho do pintor, lendo entrevistas e poemas através da pronúncia haitiana que partilhava com ele. Esta fama conquistada conduziu a uma reinterpretação do ser artista, agora imbuído de um espírito de estrela, sobre quem caíam as maiores graças e atenções.

Socialmente, a arte de Basquiat permitiu inspirar a fundação de alguns movimentos de cariz social, como o Black Lives Matter, fundada nas redes sociais após o assassinato de dois jovens afroamericanos por parte das forças de segurança pública norte-americanas. Este grupo, a partir das expressões artísticas e culturais de raiz marcadamente suburbana, permanece a bater-se contra a gentrificação e a própria apropriação cultural, opondo-se à acomodação numa espécie de contracultura corporativa. Na essência, porém, ainda se confronta com os resquícios de uma sociedade profundamente racista, mas que, nominalmente, ainda faz subsistir algumas das suas premissas, principalmente na própria ação policial. Isto resulta da própria aclaração que Basquiat procurou efetuar quanto ao passado racial, que se repercute no seu presente e futuro artísticos, que chega aos dias de hoje com os supramencionados desafios.

No que toca àquilo que são os valores transmitidos pelo artista, são vários os pintores, tanto de origem e de plataforma urbanas ou não, que reforçam a sua criação totalmente espontânea, possibilitadora de um canal de comunicação dos mais oprimidos. Extrapolando para lá disso, também a própria capacidade de transformar e de transportar uma faceta identitária, assente na diversidade e na igualdade das existências dentro dessa primeira. Pelo meio, nunca esqueceu as suas origens porto-riquenhas, porfiando sempre pela valorização da sua herança cultural, numa das fragmentações atlânticas do território norte-americano.

Para além disso, a sua composição artística nas várias paredes da sua cidade tornou-se perene com as técnicas de graffiti que possuía, para além de demais materiais de recurso; e assumiu o papel de primeiro grande artista afroamericano, incorporando a identidade progressista norte-americana, no embate com os valores mais conservadores e ferreamente iníquos. A sua irreverência revelou-se crucial naquilo que foi o desabrochar da arte urbana, num diálogo intenso entre reflexões e emoções, articulado nessa vontade de revelar e de metamorfosear.  É assim que a atualidade desta obra se consolida naquilo que são os desafios emergentes quotidianos, respondendo com a afirmação das minorias outrora com vozes quase inaudíveis nos palcos da discussão social. A construção de significados e a devolução de outros tantos são a cadência presente desta estrela, que cedo caiu no turbilhão do nosso mundo.

Apesar do seu tremendo potencial criativo e conceptual, nem tudo foi rosas na valorização e iminente inspiração de Jean-Michel Basquiat. Considerado como um artista menor no contexto da crítica artística, foi a partir dos mais interessados e impulsionados pelas causas sociais, para além das expressões mais identitárias das minorias e dos subgrupos, que conhece um póstumo catapultar. A sua inspiração, ultrapassando a própria materialidade, remanesce nos ecos de luz e de som de hoje, à escala da amplitude de uma carismática personalidade, que soube fazer e ser hino para a igualdade justa e expressiva da humanidade.

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