Jean-Michel Basquiat, um mundo condensado no spray

por Lucas Brandão,    18 Janeiro, 2017
Jean-Michel Basquiat, um mundo condensado no spray
“Philistines” (1982), de Jean-Michel Basquiat
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Jean-Michel Basquiat foi um dos principais nomes da história da arte urbana, pioneiro no seu uso do grafíti como meio de criação e na promoção deste como meio de produção sociocultural. Não obstante uma vida curta que se prolongou por vinte e sete anos, o norte-americano engradeceu o Neo-Expressionismo na segunda metade do século XX. O estatuto de celebridade que granjeou também lhe veio a abrir portas para os seus vícios, principalmente para a toxicodependência. No entanto, nada disso lhe retirou o ênfase social da sua criação artística e as posições claramente definidas pelas figuras coloridas e abstratas que os seus sprays soltaram e que nunca mais apagaram da memória e da história.

Jean-Michel Basquiat nasceu em Nova Iorque, nomeadamente em Brooklyn, no dia 22 de dezembro de 1960. De uma família numerosa, foi a mãe que lhe incutiu o gosto pela arte ao levá-lo a museus artísticos em Manhattan, tornando-o membro júnior do Museu de Arte de Brooklyn. Com dotes que se revelaram de forma prematura, o pequeno Basquiat aprendeu a ler e a escrever aos quatro anos, entrou na escola artística privada Saint Ann’s com sete e, aos onze anos de idade, já falava fluentemente inglês, francês e espanhol. No entanto, ainda com sete anos, foi abalroado por um carro enquanto brincava na rua. Partiu um dos braços e várias lesões internas foram contraídas, tendo sido um período difícil da sua vida que culminou na separação dos seus pais e com o internamento da sua mãe numa instituição de saúde mental. Antes de emigrar para Porto Rico, em 1974, a sua mãe comprou-lhe um livro que se revelou crucial no seu trabalho artístico. A obra foi Anatomia de Gray, publicado em 1858 por Henry Gray, que retratava com pormenor a anatomia humana. Depois do seu regresso a Nova Iorque, Basquiat fugiria de casa, dormindo em bancos de um parque nos arredores e sendo preso e devolvido aos cuidados do pai uma semana depois.

A sua formação secundária foi feita na City-As-School, uma escola alternativa na qual muitos aspirantes a artistas estudavam devido ao seu insucesso no ensino convencional. Devido a esta decisão, o seu progenitor expulsou-o de casa (uma vez que era também encarregue de duas outras filhas), e o norte-americano viu-se obrigado a viver com amigos. O seu sustento financeiro provinha da criação e venda de postais e de t-shirts da sua autoria. Com a tenra idade de 16 anos, Basquiat e o seu amigo Al Diaz começaram a desenhar grafítis em prédios no sul de Manhattan, assinando as obras com o pseudónimo SAMO (“same old shit”). Esta designação provinha da visão que os dois jovens tinham, na qual tudo assumia uma tonalidade cinzenta na mistura das estruturas corporativas com o meio social artístico predominantemente branco em que desejavam entrar. Em 1978, Basquiat trabalhava no departamento artístico da Unique Clothing Warehouse, quando o fundador desta empresa, chamado Harvey Russack, o descobriu a grafitar num apartamento e não resistiu em propôr-lhe uma oferta de trabalho. Nesse mesmo ano o projeto SAMO acabou, mas não sem antes figurar num artigo realizado pelo órgão de comunicação The Village Voice. A formalização do final desta parceria irreverente decorreu no ano seguinte nas paredes dos edifícios de SoHo, em Manhattan, com a mensagem “SAMO IS DEAD“.

Com somente 18 anos, Jean-Michel Basquiat surgiu na televisão, tendo sido convidado pelo apresentador do programa TV Party, Glenn O’Brien, com quem viria a estabelecer uma frutífera relação. O seu trabalho artístico não se limitaria aos sprays, criando uma banda de música vanguardista de nome Gray, que figurou em várias bandas sonoras cinematográficas. Esta banda contava com nomes como Michael Holman e o ator Vincent Gallo e atuou em vários bares nova-iorquinos. Com 19 anos, foi protagonista de um filme da autoria de O’Brien, de nome Downtown 81, assumindo uma personagem com muitas semelhanças a si e à sua vida. O novo fulgor que a sua carreira artística tomou deveu-se a Andy Warhol, que conheceu num restaurante, e com quem privou e trabalhou durante o que restava da sua vida. A obra mais conotada, desenvolvida pelo dueto, foi “Olympic Rings” (1985), no qual o nova-iorquino respondeu às formas inicialmente concebidas por Warhol com o registo abstrato e estilizado que se lhe era conhecido. Os anos 80 chegaram e essa espiral progressiva da sua carreira confirmou-se, participando em exposições, principalmente na The Times Square Show, em vários espaços conotados nos subúrbios de Nova Iorque. No ano seguinte, em 1981, o também artista René Ricard publicou, na revista Artforum, The Radiant Child“, artigo no qual referenciou e valorizou o trabalho de Basquiat desde os tempos da SAMO.

Os convites internacionais não tardaram em surgir e Basquiat chegou a viajar até Modena, em Itália, em 1982, ano em que se hospedou na Califórnia, onde trabalhou num estúdio construído por Larry Gagosian. Neste, desenvolveu uma série de pinturas para uma exposição em 1983 e, para os eventos que consagraram a exposição em duas galerias californianas, Basquiat levou a sua namorada. Esta era, nada mais nada menos, que a então desconhecida cantora Madonna. Como inspiração para todo o trabalho realizado, contou com os contributos do músico David Bowie e do também artista Robert Rauschenberg. Mesmo com a sua afirmação confirmada no ramo da pintura, o nova-iorquino não prescindiu da música, desenvolvendo um single de rap com os artistas K-Rob e Rammellzee, de nome “Beat Bop“, e a capa do mesmo a partir dos seus dotes artísticos. Ainda no campo da exposição artística, colaborou com nomes como o italiano Francesco Clemente e os americanos David Salle e Julian Schnabel, em galerias de lugares como Edinburgo, Londres e Roterdão.

Toda a rebeldia de Basquiat revelava-se também na indumentária, vestindo tanto fatos Armani como roupa na qual personalizava e espalhava os diferentes cromatismos. A sua veia artística condizia em pleno com a sua personalidade e com esse fervor neo-expressionista, dando vida às palavras que eventualmente colocava em simbiose com as figuras pintadas. As questões sociais e políticas não foram esquecidas, em especial nos tempos da SAMO, mas nem esse ativismo artístico o demoveu de pintar em propriedade alheia, ou de forma aleatória e até não legalizada. A simbologia do seu trabalho materializou-se em todas as formas e feitios, incluindo logótipos, símbolos cartográficos, diagramas e até pictogramas. Numa fase mais amadurecida da sua personalidade criativa, Basquiat arriscou em obras multi-painéis e em pintar, escrever e até em fazer colagens em superfícies de grande extensão. Para além da referência que obteve da obra que a sua mãe lhe ofereceu, também os cadernos de Leonardo da Vinci e os livros African Rock Art (1969), de Burchard Brentjes, e Symbol Sourcebook (1972), de Henry Dreyfuss, serviram como base aos seus idiomas pictóricos e auxiliaram-no na tentativa de um reencontro da humanidade com a anatomia. Este esforço dava-se na desconstrução do corpo, que tornava viável uma relação de identidade no binómio corpo-alma.  Todavia, o que nunca deixou de sobressair neste trabalho foi a vontade voraz e a fascinação quase pueril de criação por parte do artista.

O teor da arte produzida por Basquiat não se restringiu à expressão do que lhe atravessava a alma, recriando a linguagem de superação e de emancipação através da arte. Aliás, o americano sentia muito a necessidade de consolidação da herança sociocultural dos seus antepassados, incluindo temas como a escravatura e a colonização. Estes temas eram ajustados e justapostos à contemporaneidade dos mesmos, traçando um relato histórico que permitisse a discussão atual dessas vicissitudes sociais. O enfoque era maioritariamente dirigido à comunidade afro-americana e para a forma como esta foi controlada e manipulada pelos caucasianos ao longo do tempo, alegando também a corrupção em que a sociedade mergulhou. O próprio tratamento das figuras era sui generis e associado aos papéis desempenhados por cada uma das forças representadas, rebuscando até as origens haitianas que o seu pai tinha e magicando sobre os poderes do voodoo.

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“Leeches”, Basquiat (1983)

A influência do trabalho de Basquiat nos seus sucessores impressionou, chegando tanto à literatura como à música, ao cinema e à moda. O poeta Kevin Young redigiu em 1991 o livro To Repel Ghosts, no qual reuniu 117 poemas sobre a vida, obra e pensamento do multifacetado artista norte-americano. Por sua vez, o seu amigo Julian Schnabel realizou o filme Basquiat, onde David Bowie assumiu o papel de Andy Warhol. No campo da música, são várias as referências feitas por diferentes cantores, tais como J. Cole (na faixa “Rich Niggaz“, de 2012),  Jay Z e Frank Ocean ( “Oceans“, de 2013), e a sua antiga companheira Madonna (“Graffiti Heart“, gravada em 2014). No caminho da moda, o vanguardismo criativo de Basquiat deu origem a que várias empresas de criação e comércio de vestuário usassem os seus trabalhos, tais como a Urban Outfitters e a Redbubble.

Jean-Michel Basquiat, como prodigioso artista e figura proeminente na comunidade afro-americana, sucumbiu perante o misticismo dos 27 anos que vitimaram alguns outros, tais como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Kurt Cobain ou Jim Morrison. Com todos estes nomes foi a toxicodependência que provocou as precoces mortes, sendo neste caso o consumo de heroína a principal causa. Este vício aumentou de grau após a morte do seu parceiro Andy Warhol, no ano de 1987. A solidão levou-o, mesmo após tentar desintoxicar-se, a uma overdose no seu estúdio de Manhattan. O seu legado tomou proporções ajustadas ao talento que o mundo havia visto partir, assumindo-o como um revolucionário na fusão da arte com o urbanismo e do estudo da humanidade pela expressão urbana. Este ímpeto irreverente dirigiu-se contra a “same old shit“, ação materializada nos seus primeiros passos como artista, e procurou a claridade no meio de um túnel escurecido pelo preconceito e pelo receio da morte. Consolidando o factor humano da arte, assegura-se o estatuto e o caminho da imortalidade.

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“King Alphonso”, Basquiat (1983)

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