‘Yoro’: viver depois de Hiroxima

por Mário Rufino,    17 Abril, 2017
‘Yoro’: viver depois de Hiroxima
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Lloro por ella. Assim poderia começar “Yoro” (Elsinore), de Marina Perezagua (n.1978, Sevilha). A fonética do nome desta menina aproxima-se da primeira pessoa do verbo Llorar [Chorar].
O testemunho de H, personagem principal deste livro, é um lamento, um choro, por Yoro.
Em 1945, é lançada a bomba atómica sobre Hiroxima. A bomba que desumanizou tinha um nome carinhoso: “little boy”. H., com treze anos, estava na escola, a dezenas de quilómetros do local onde “Enola Gay”, bombardeiro comandado por William Sterling Parsons, gerou destruição. H. sentiu a violência do impacto principalmente no sexo.

“ (…) embora conservasse as formas em todas as minhas extremidades, havia uma massa disforme e irreconhecível que ia do meu baixo-ventre até às virilhas. O inchaço era tão grande que, apesar de, naquele momento, não poder ter a certeza, tudo parecia indicar que a sanha da bomba havia arremetido principalmente com o meu sexo”  

Muitos anos passados, H. conhece Jim, um soldado americano que procura desde a guerra com o Japão uma menina que ele havia adoptado. Essa menina chamava-se Yoro.
Por ordens militares, as crianças adoptadas só poderiam ficar com uma família durante cinco anos. Jim desobedeceu enquanto teve possibilidades. A menina foi-lhe retirada e enviada para uma outra família, em local desconhecido. H. junta-se a Jim nessa procura durante décadas.

“ (…) fui-me apercebendo de que na procura, na apropriação daquela filha, também eu poderia encontrar a filha que não havia podido ter.”

H. nasceu homem e transformou-se em mulher, após várias cirurgias. A identidade de H. resulta da relação entre o cérebro e o corpo. Descartes afirmou “penso, logo existo”, remetendo o coração para segundo plano. Ficaria assim ultrapassado o conceito aristotélico que tinha no coração o âmago da sua teoria. O cérebro passou a ser o centro. Mas a Descartes passou ao lado a associação entre cérebro e corpo. Em H.,a dissociação é evidente.
Naomi Wolf, em “Vagina – uma nova biografia”, afirma que “a vagina e o cérebro são essencialmente uma única rede, ou «um único sistema», nas palavras deles [cientistas], e que a vagina serve como mediadora de consciência feminina, criatividade e sensação de transcendência”.
A cultura é indissociável ao respeito ou desrespeito com que a vagina é tratada. Há tantas formas de ver a vagina que os estudantes da história das ideias lhe chamam constructos, afirma Naomi Wolf na sua obra. Desta forma, podemos dizer que H. procura Yoro e procura a sua identidade de género. Ao longo da sua vida, ela ouve testemunhos de mutilação genital e de prostituição; sofre com a rejeição de vários amantes por, fisicamente, não corresponder às expectativas; e encontra a amiga S., “que só quer ascender ao seu êxito espiritual por essa escada de caracol por degraus que são, todos e cada um, diferentes: a sexualidade”.
A intersexualidade é facilitada ou mesmo proporcionada pela explosão da bomba atómica. Aquilo que tanto lhe tirou também lhe deu. A destruição trouxe consigo uma luz. O maniqueísmo e a utilização da dor como estratégias de manipulação do leitor são afastados. Nada neste romance é linear. O género é volátil. E isto aplica-se tanto à identidade de género como ao literário. A plasticidade oferecida pelo romance é explorada por Perezagua. Registo epistolar, contos, análise política e social são utilizados na formação do corpo narrativo. É um corpo dentro do outro. A voz impõe-se na primeira pessoa, o que não deixa de ser sintomático, pois H., uma consoante muda, é nome de uma personagem despersonalizada, pertencente a um povo que não quer falar nos acontecimentos de Hiroxima e Nagasaki.
As ligações entre países como Japão, Estados Unidos, República Democrática do Congo e entre temáticas como a proliferação nuclear, experiências científicas com seres humanos, prostituição, escravatura, corrupção, identidade de género e estratégias geopolíticas parecem ser impossíveis de conciliar num romance. Perezagua consegue-o com distinção. A ligação entre Hiroxima, no Japão, e Shinkolobwe, na República Democrática do Congo, é aparentemente inviável. A autora vai mostrando, devagar para que o leitor sinta e compreenda, que a violência espalhada pelo avião americano na localidade japonesa começou nas minas congolesas.
“Yoro” começa com “gravidez zero: 1942” e termina com “Parto: 2011-2014”. A gestação do romance tem paralelismo com o da gravidez.
A relação entre tudo o que compõe “Yoro” é sintetizada por H., quando afirma “O que eu não sabia era que aquela gravidez, a que alguns chamariam psicológica, iria marcar a rota de uma viagem que tinha começado no Japão e terminaria em África. De um lado, a cabeça veloz de um espermatozóide: a bomba atómica de Hiroxima; do outro, a sua caudinha: um incêndio na República Democrática do Congo.”
E será pelo fim, por esse incêndio, que H. começa a narrar e a confessar um crime por si cometido.
A génese de “Yoro”, primeiro romance da autora, está em “Little Boy”, narrativa breve presente na compilação de contos intitulada “Leche”.
A autora espanhola publicou diversos contos em revistas como “Electric Literature” ou Granta. Em boa hora decidiu apostar numa narrativa mais longa.

Vertiginoso, impactante, a não perder. “Yoro” é um grande romance de estreia.

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