‘Who is America?’ ou quando o humor nos expõe e confronta com assuntos sérios

por João Pinho,    30 Agosto, 2018
‘Who is America?’ ou quando o humor nos expõe e confronta com assuntos sérios
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Nos tempos que correm é cada vez mais difícil utilizar armas (políticas), como o humor, para debater a actualidade. Com o surgimento das redes sociais talvez tenhamos ficado demasiado sensíveis a discutirmos certos temas e tendemos a abafar ou mesmo a eliminar o papel do humorista dos debates. Não se pode fazer humor com certas classes ou nichos sociais, porque vamos cair em mais uma polémica. Neste contexto, surgiu a série satírica Who Is America?, que já criou bastante polémica na classe política americana. Já não ouvíamos falar de Sacha Baron Cohen (Ali G, Borat, The Dictator, etc) há algum tempo. Agora, veio com força ou assim dava a entender…

O projecto foi publicitado com uma mensagem forte: vamos abolir o establishment americano, chocando (o que eu esperava ansiosamente) com pessoas ligadas a Trump, talvez até com os seus ministros e advogados. Após o visionamento, a expectativa foi reduzida a pedaços, para tristeza de quem assiste.

No primeiro episódio, Sacha apresenta ao espectador algumas das suas personagens sem colar ainda uma mensagem política a cada uma delas. As cenas, só por si, são hilariantes. Desculpa-se, assim, a demora no verdadeiro começo desta jornada pela sociedade americana. Com a apresentação do ex-agente da Mossad (a personagem mais consistente e criada de forma mais inteligente, e excepção à falta de mensagem política), ficamos logo chocados com as ideias que movem uma parte dos políticos e das empresas de armas.

A partir do episódio seguinte, a desculpa já não cola. Em várias cenas não existe nenhuma mensagem lógica ou, pelo menos, a mesma não é facilmente decifrável. Uma das personagens, por exemplo, partilha ideias random sobre a sua mulher tê-lo traído com um golfinho, algo que nos faz rir (sim), mas que para o propósito da série, não dá um seguimento à história. As cenas são tão boas em termos humorísticos que nos fazem esquecer o pretexto daquilo tudo. E isso é um erro. Assim, podíamos simplesmente dividir as diversas cenas em vários sketchs que podem ser vistos separadamente, tanto temporalmente como em termos de contexto.

Para não nos ficarmos só por comentários vagos exemplificamos com alguns casos. Logo no segundo episódio ele junta dois candidatos locais, completamente diferentes um do outro: um rapper negro da Georgia e um político experiente branco da Carolina do Sul. A primeira pergunta que é feita pelo moderador (Sacha) é “de que forma o primeiro candidato gosta de ser referenciado, em termos raciais”. O ambiente, naturalmente, fica constrangedor e o debate (quase monólogo) prossegue com o moderador a inventar letras de rap sem sentido e a falar das suas experiências homossexuais. No fim, a única coisa que nos choca é a personagem. Não é a realidade americana através das ideias dos candidatos, não. Ou seja, uma cena constrangedora e hilariante, mas não mais do que isso.

Uma outra cena mal explorada, esta já com um conteúdo mais relevante, foi a da participante do reality show The Bachelor. As novas “personalidades” do século XXI substituíram as personalidades clássicas: pensadores, filósofos, políticos, cientistas, entre outros. Elas vivem à custa da sua imagem e somente disso. Assim, vivemos numa sociedade cada vez mais plástica e que premeia cidadãos sem quaisquer tipo de ideias. Este, portanto, é um assunto relevante e esta dinâmica, agora também visível na Europa, foi importada dos EUA. Com esta cena, a única coisa que concluímos é que a rapariga é extremamente limitada intelectualmente e ingénua. Tão somente isso. E isso é irritante.

Apesar disto tudo, quando ele consegue enganar políticos ou outras pessoas poderosas a fazerem, por exemplo, publicidades ridículas a armas, a experimentar novas tecnologias para detectar bombistas ou a participar em treinos de sobrevivência a ataques terroristas, mostra o lado mais podre nos estratos sociais mais altos, como também a simples estupidez generalizada. Quanto consegue conectar os seus murros, fá-lo com força. Não que esta realidade não nos tivesse já sido dada a conhecer. Mas o nível de decadência é ampliado ao ser captado por uma câmara e isso é o que realmente nos choca ao mesmo tempo que nos faz rir. Este é o grande trunfo do humorista. As cenas são tão boas que parecem falsas. Quem se deixou enganar acabou por andar na palma dele, mas atenção, estas pessoas deixaram-se enganar porque realmente acreditavam nos seus ideais. Não se trata de um caso em que há um aproveitamento de qualquer tipo de limitação da pessoa. Em nenhum momento ela é uma vítima a não ser da sua própria estupidez, ignorância ou ideais perigosos. É isso que torna tudo aquilo verdadeiramente assustador.

As duas principais perguntas que surgem após a visualização do primeiro episódio foram: como é que ele consegue manter uma cara tão séria até ao fim e como é que conseguiu enganar todas aquelas pessoas? É incrível nesse aspecto. Sacha Cohen é um dos melhores humoristas na categoria in loco, algo que já podíamos concluir dos seus projectos anteriores. Utilizando as suas personagens engana alguns para dar um riso a muitos. O palco é a realidade que nos rodeia e em que o humorista, em muitos casos, contacta com alguns dos poderosos deste planeta.

Para nossa tristeza, a lógica do seu empreendimento, em muitas situações, perdeu-se no meio de tanto humor e constrangimento visível nas caras das pessoas. Faltou-lhe ser mais incisivo quando tinha tudo a seu favor: uma sociedade fracturada, uma quantidade substancial de cidadãos que demonstram enorme ignorância em diversos temas (os mesmos temas que agora elegem políticos) e os próprios políticos que os representam têm ideias altamente conservadoras, populistas e perigosas. A própria escolha dos convidados (alvos) podia ter sido melhor. Acabou por somente roçar na esfera da elite quando podia ter ido às pessoas mais próximas de Trump e não aos seus apoiantes civis ou políticos locais.

Mesmo assim vale a pena desfrutar a série. Não se deve esperar um choque ideológico constante ou um grafismo característico de um documentário ou uma reportagem, mas sim um humor delicioso do início ao fim e de uma perspectiva diferente da que podemos ter visto até agora. Não esperem ver a série da nossa geração, mas o esforço é notável e considerável. Muitas vezes, esse esforço conseguiu ser perigoso para o próprio humorista.

Dizer-se que se gostou da série (descartando os erros anunciados anteriormente) é dizer-se que se ficou altamente desconfortável com o estado de uma sociedade que era colada num pedestal por se tratar do país mais poderoso do mundo. No meio do sonho americano, de universidades altamente prestigiadas e de jornais de referência, mesmo ao lado respira uma classe política que se guia pelos piores valores, uma sociedade desinformada que pensa que o seu salvador é Donald Trump e de alguns cientistas (alguns que se colam aos mesmos políticos que nos assustam) que ofendem os princípios que regem a Ciência, como é a sua factualidade. Os EUA já não são o país modelo para o mundo e não foi só agora que o véu foi levantado.

Entre processos no tribunal colocados por supostas vítimas das armadilhas do humorista britânico (algo que dá conforto por aquilo não se tratar de algo scripted), deve gastar-se tempo a ver esta série. A ignorância faz-nos (supostamente) mais felizes, mas o conhecimento (desta série) dá-nos um tipo de alegria perturbadora.

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