Você na TV e o resto fica onde, Manuel Luís Goucha?

por Cronista convidado,    11 Agosto, 2020
Você na TV e o resto fica onde, Manuel Luís Goucha?
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A questão do Manuel Luís Goucha é um bocadinho mais sensível do que uma mera figura que partilha e normaliza o André Ventura — estamos a falar da pessoa que, ao longo de muitos anos, tem recebido muitos pais e avós de braços abertos no seu programa — os dados audiométricos apontam para que, em média, meio milhão de pessoas vejam o Você na TV. Meio milhão que assiste a três horas onde o Manuel Luís Goucha é a estrela e figura central, onde a sua voz é a mais ouvida.

Estive a uma nesga de escrever um texto sobre ele para o Queerquivo (escolhi o José Castelo Branco, mais ou menos pelas mesmas razões) e de como a sua janela de três horas ajudou a normalizar, junto de uma população mais velha e menos informada, a sua relação homossexual.

Concordando-se ou não com muitas das posturas e dos comentários (e são muitos aqueles que não concordo vindos dele): o que importa é que pessoas como a minha e a tua avó, a tua e a minha vizinha, o senhor do café; as velhinhas dos bairros de norte a sul viam que homens conscientes, capacitados e, acima de tudo, felizes podiam amar-se, viver juntos, ser um casal, e que isso era absolutamente normal. “Não é uma questão de aceitar, não há nada para aceitar. Eu sou absolutamente normal”, dizia Goucha há dias para o homofóbico que entrou na última edição do Big Brother.

Manuel Luís Goucha cumpre, assim, um papel fundamental na estruturação da mentalidade portuguesa — não fosse a televisão o entretém, o beber de conhecimento e informação, a janela para o mundo de tanta e tanta gente por este país fora.

E por isso é absolutamente perigoso aquilo que defendeu relativamente ao caso do Olavo Bilac e de André Ventura: é normalizar o discurso de quem não o acha normal, não acha correto aquilo que o Manuel é. Não acha aceitável haver amor entre duas pessoas que não são heterossexuais. Uma estrutura de pensamento que não vê o amor do Rui e do Manuel como amor e como o casal normal que ele tanto apregoa, mas como uma abominação, um outlier — sem quaisquer direito constitucional.

O Manuel Luís Goucha tem obviamente direito em ter uma opinião política, mas nunca uma opinião que seja contra os valores que tanto defende e que tanto ajudou a cimentar na cabeça das pessoas. Aquilo que ele defendeu põe-me em risco, mas também a miúdos homossexuais nas aldeias (ainda os há), a miúdos homossexuais, que como ele, estão à procura do sonho e de um lugar para existir.

Esqueceste-te de quem és e de quem foste, Manuel?

A isto chama-se consciência. E claramente, perdeu-a. E ainda bem que não escrevi o texto sobre ele — a esta hora a minha consciência estaria pesadíssima em ter o meu nome impresso ao lado do dele.

Crónica de Gonçalo Cota
Nascido em Almada, Gonçalo Cota é analista de dados e escreve, esporadicamente, sobre música. Já viajou por mais de 30 países, foi a mais de 200 concertos e festivais, é fã de figos e odeia favas com entrecosto. Uma destas coisas é mentira – não acreditem em tudo o que lêem na internet.

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