Vincent Moon e Priscilla Telmon: “Entendemos a música como um efeito harmonizador dentro de uma comunidade”

por Linda Formiga,    13 Dezembro, 2019
Vincent Moon e Priscilla Telmon: “Entendemos a música como um efeito harmonizador dentro de uma comunidade”
Vincent Moon & Priscilla Telmon – Fotografia de Vera Marmelo/ Culturgest
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É possível que o nome Vincent Moon seja estranho para a grande maioria das pessoas, mas o caso mudará inversamente de figura se falarmos em Blogòtheque ou nos Take Away Shows. Com uma visão diferente e peculiar, os Take Away Shows mostraram concertos intimistas de bandas como os Arcade Fire, The National, Beirut ou Bon Iver. Os Take Away Shows eram para Vincent Moon “como seguir o vento, ou seguir o ar, emergindo de uma ideia que pairava”. Vincent Moon já se afastou dos Take Away Shows porque a vida assim o quis, mas continuou de certa forma aliado aos artistas indie que ajudou a promover, colaborando na plataforma 37d03d, mostrando ao mundo os eventos que os irmãos Dessner, Justin Vernon e os Michelberger organizam a cada dois anos em Berlim, numa tentativa colectiva de mudar o paradigma, de desafiar normas impostas pela indústria.

A vida, a curiosidade pela génese, pelos sons e pelos rituais levaram Vincent Moon e Priscilla Telmon a criar Petit Planétes, um projecto transversal que explora os limites entre cinema e música. Foi nesta investigação etnográfica e experiência que surgiu Híbridos: os Espíritos do Brasil, que explora várias formas de rituais do Brasil, com a sua musicalidade e os seus movimentos. Este e outros projectos podem ser acedidos no site dedicado a Híbridos – Os Espíritos do Brasil e no site Petit Planètes.

Foi para compreendermos um pouco desta abordagem algo nómada, algo espiritual, que falámos com Vincent Moon e Priscilla Telmon entre os afazeres de um soundcheck tão cheio de artefactos quanto as voltas que deram pelo mundo.

Começando pelos Take Away Shows, tinha noção que, ao fazer os pequenos concertos, estava a documentar o início da história de bandas que depois se tornaram bandas de culto, ou mainstream até?
VM: O que foi muito interessante, quando fizemos esses Take Away Shows, foi que de alguma forma estávamos a seguir o vento. O projecto emergiu de um momento em que não era só a nossa ideia, mas uma ideia que pairava no ar. “Podemos filmar estas bandas de uma determinada maneira?” ou “Podemos ir para a rua e tentar usar as ferramentas digitais de uma outra forma muito DIY, muito feito no momento”? Talvez a Blogothèque tenha sido a primeira, depois muitos outros projectos se seguiram porque há sempre um projecto que influencia um outro, que influencia o outro, como é normal. Nessa mesma altura, houve uma emergência de uma cena musical que estava a começar nessa altura, então cruzámo-nos com os Arcade Fire, com Beirut, com Grizzly Bear, The National também, obviamente. Éramos jovens nessa altura.

Agora ainda faz algumas coisas com o PEOPLE, com os festivais/residências que foram realizados em Berlim.
VM: O que foi interessante para mim é que a Blogothèque parece quase uma outra vida. As pessoas estão a perguntar-me sobre essa altura, o que é interessante que faz com que tente lembrar-me de algo que está tão distante de mim. Embora não tivesse seguido muito a carreira de cada um, foi bastante interessante ter estas aventuras muito rápidas com todas estas pessoas que são super famosas e estão a fazer música maravilhosa. Eu fugi… não, eu “sumi”. Fui para coisas pessoais, tive de sair e de viajar. Dez anos depois voltei, porque fizemos esta coisa do PEOPLE e pude ligar-me de novo a estas pessoas, o que me fez ver que são pessoas que também estão numa certa busca espiritual, que talvez seja muito mais difícil quando se nos mantemos numa sociedade ocidental. É sentir que, para alguns destes artistas, mudar a maneira como se faz não é fácil. Existem muitos padrões quando se está numa indústria como a da música ou do cinema, da qual não fazemos parte. Ao não estarmos dentro de qualquer indústria, temos muito mais asas, muito mais liberdade para experimentar, para mudar, para entrar numa outra busca. Quando fizemos o PEOPLE, tivemos duas edições. A segunda foi ainda maior. Tudo me parecia como um grande ritual, também.

Era aí que eu gostaria de chegar. Parece que o seu trabalho na música saiu de bolha grande, em especial com a explosão da Internet, e direccionou-se depois para os pequenos planetas, para os Petit Planètes. Mesmo na música indie, encontrou um pólo no PEOPLE, mas fora da música encontrou vários pólos em muitas culturas que foram visitando. É isso que vos move? Conhecer o que há de basilar em todas as culturas que visitam e que no fundo é a alma destas?
VM: Quando saí desta maneira de entender a música e a arte para viajar, e poucos anos depois encontrei a Priscilla, vi que as ideias musicais são muito marcadas pela vida do artista, como ego, como pessoa diferente, como uma pessoa que irá talvez trazer a luz para o povo (risos). Mas por outro lado, o uso da música em comunidades da Indonésia, no Brasil, Amazónia, é muito mais comunitário. Eu não gosto muito de falar de música tradicional, tudo é um movimento. É certo que existem coisas mais antigas do que outras, o papel da música está dentro dessa relação mais antiga. Para mim, faz muito mais sentido entender a música como um efeito harmonizador dentro de uma comunidade. De alguma forma, todas as pessoas fazem parte do mundo da música, ou fazem música, ou estão no momento criativo. Isso foi, para nós, muito importante mostrar, documentar, celebrar essa difusão da criatividade. Voltando ao mundo ocidental, vemos essa separação entre arte e o artista de um lado e o espectador do outro; o criador e o objecto/produto e quem vai comprar. Isto não faz sentido, é absurdo, porque perdemos um caminho. A colisão da arte com essa comercialização de tudo, com esse capitalismo, resulta em muitas coisas más na compreensão do motivo que nos leva a criar. Acho que, para nós, ligarmos música sagrada ao uso da música como ritual, o uso da música como transcendência, abre muitos caminhos nas nossas mentes. O que estamos a tentar fazer é questionar se podemos recolocar essas formas de fazer também no mundo ocidental. Num mundo com tecnologias avançadas, como podemos ritualizar novamente, como podemos recriar formas de estarmos juntos e sairmos, pouco a pouco, dessa posição do artista, do ego, do individualista, que está a contaminar tudo. A proposta do PEOPLE foi muito interessante, mas é só o início, há ainda muito trabalho a fazer. Foi um momento de awakening para muitos músicos, até para Justin Vernon (Bon Iver) ou para Leslie Feist, todos eles foram marcados. É uma coisa muito simples, mas sair da zona de conforto pode ser algo extraordinário. É como abrir a janela e finalmente, depois de muitos anos, sentir um vento novo.

PT: São músicos que estão num circuito muito físico de tocar em salas grandes, industriais. Sair deste padrão pode ser realmente um vento novo, que ajuda muito na criação. São também os músicos que precisam de sair e de se superarem.

VM: Com alguma distância agora, posso ver que estamos de certa forma presos numa narrativa entre várias narrativas. A nossa realidade é uma criação numa narrativa, estamos a ficcionar essa realidade. Dentro da música, temos essa presença demasiado forte da canção. A canção de três minutos. Esse formato já não funciona e não funciona há já muito tempo, porque é muito redutor. Esse formato da canção emerge, em algum momento, com uma sociedade que está a emergir com uma nova narrativa sobre o tempo. A canção é, para mim, muito ligada à ideia do tempo linear. À linearidade do tempo, de passado, presente e futuro. O que nós compreendemos, através da música sagrada, músicas antigas, xamânicas, é que o formato não é o da canção, não é uma pequena história que vai de um passado para o futuro. É muito mais um arquétipo ancestral que volta sempre. As músicas sagradas têm em si uma repetição que tem muito que ver com a circularidade do tempo. Com a volta do mesmo. O tipo de mantra que encontramos muito num ritual xamânico tem tudo que ver com o ciclo da natureza. Acho que este tipo de música nos ajuda muito mais a estarmos em conexão com tudo. Dentro de uma comunidade, criar esse tipo de música (o que é uma pergunta que todos nós transportamos), ou recriar essa relação com o tempo trabalhando as nossas músicas para criar uma música que tem outra narrativa, uma narrativa que tem muito mais que ver com a natureza. Não sei se estou a fazer muito sentido…

Vincent Moon & Priscilla Telmon

Não serão os sons, a cadência dos sons, e como todos fazem sentido dentro de uma comunidade?
PT: Sim, a circularidade da vida, só isso. É também por isso que tocamos desta forma. Para nós, tocar desta forma ao vivo dá também a ideia de circularidade. Não há uma coisa linear, é claro que temos um início e um fim, porque não vamos tocar toda a noite (risos), mas a ideia é reinventar uma coisa, uma circularidade, uma proposição de estarmos presentes. A improvisação é exactamente isso, não tocar uma música que se vá tocar cem vezes. Não sabemos o que vamos tocar, mas vamos.

A improvisação que faz são com base nos sons “nativos” dos sítios onde estiveram?
PT: Sim, são de todos os filmes do projecto Híbridos que vamos tocar hoje. Mas a forma como vamos editar, ou como o Vincent vai editar, é algo novo. No sábado, em Braga, será totalmente diferente, porque os arquivos serão iguais, mas a forma como tocamos vai ser outra. Tem que ver com a energia das salas, das pessoas. Podemos sentir a energia das pessoas, se é uma coisa mais de meditação, mais enérgica. Os momentos dos filmes e a história serão totalmente diferentes.

VM: Há muita abertura para a interpretação e isso é muito importante. Não queremos dizer uma coisa clara. O nosso jogo é muito do mistério, deixar uma coisa um pouco mais subtil para cada um interpretar.

Estão actualmente no Brasil?
VM: Não, já não. Desde Março que já não estamos.

PT: Infelizmente. Depois de cinco anos, o ciclo de vida também terminou. Acabou o projecto do Híbridos e estamos a agora com projectos na Europa.

Quando estiveram no Brasil, perseguiam os sons ou eram os sons que vinham ter convosco?
VM: Pesquisámos bastante, viajámos e pesquisámos sem parar, a tentar gravar rituais que nunca tinham sido gravados. Dar uma luz sobre essa diversidade incrível, uma diversidade única sobre a espiritualidade. Não há país algum no mundo assim.

PT: Nem o Brasil sabe a diversidade que existe dentro do país.

VM: Então tentámos mostrar essa riqueza, essa diversidade, para criarmos também uma outra narrativa dentro da realidade. Influenciar pessoas. É por isso que o nosso trabalho é feito de graça e disponibilizado gratuitamente online para todas as pessoas possam utilizar.

PT: Todos estes materiais podem ser utilizados nas redes de outras pessoas.

VM: Para as pessoas se sentirem inspiradas. Precisamos de muito mais inspiração para a nossa geração. Como podemos mudar a realidade se não tivermos inspiração? Os mass media, a televisão, têm um impacto muito negativo sobre isso. Estamos a destruir o nosso próprio futuro. Estamos a anular essa inspiração. Onde quer que vamos, a qualquer restaurante, a televisão está ligada, as notícias são terríveis. Estamos a chegar a uma situação muito louca em que te dizem “mas as pessoas precisam de saber”. Eu sei o que está a acontecer, mas o que eu preciso de saber também é que há outras alternativas e que precisamos de trabalhar nessas.

PT: As alternativas são as belezas, as coisas que funcionam bem. No Brasil, há coisas que são maravilhosas, mas com este novo presidente, com a Amazónia, com os povos indígenas… há uma crise enorme no Brasil. O nosso papel foi também mostrar a beleza do Brasil, porque os brasileiros e o mundo precisam de ver que o Brasil é um país fantástico. Tem de se ver que há coisas que funcionam, é preciso reequilibrar esse yin-yang. Há uma crise forte, imensa, histórica no Brasil, assim como há no Chile, na Bolívia, mas é preciso focalizar esta comunidade, este sentido de diversidade e de unidade brasileiras. É um povo com raízes indígenas, africanas, europeias que é tão único, que tem toda esta diversidade que é como um laboratório de cultura, de futuro, da nossa forma de vivermos juntos. Mesmo que existam problemas no Brasil, e há, existe também esta colectividade. Para nós, apresentar este foco sobre todos estes pequenos planetas, estas pequenas comunidades e trazer esta mensagem que eles têm sobre a comunidade. Sobre a pesquisa que têm sobre o mistério do mundo, a pesquisa sobre o invisível, a relação com a natureza, com os espíritos e tudo isto é algo maravilhoso.

Um registo é quase único, certo? O registo de algumas tradições e de alguns rituais?
PT: Sim, há pessoas que já faleceram. Houve pessoas importantes para a comunidade, para o candomblé, e que foram as últimas filmagens que fizeram. Quando recebemos uma mensagem de um professor da universidade ou de uma escola a dizer que utilizam os arquivos que nós disponibilizamos para ensinar, para mostrar aos alunos, é a melhor coisa que há. Foi um trabalho tão difícil, durante cinco anos, que, ao termos estas palavras e estas mensagens de agradecimento para mostrar que o Brasil não é apenas um país de violência, estamos a contrariar a ideia de que o Brasil é só violência, também existe, mas não é só isso. Precisamos de celebrar.

Agora com muitos povos indígenas ameaçados por causa da questão da Amazónia, poderá funcionar como um wake-up call para o mundo, não?
PT: Exactamente. Demonstrar como a riqueza do Brasil, toda a cultura é fantástica. Consegue imaginar que depois de dois anos de pesquisa pelo país – porque é um país gigantesco – ficámos sem saber como acabar, porque tínhamos de finalizar o projecto. Sempre que encontrávamos alguém, esse alguém dizia que tínhamos de encontrar aquele xamã, ou esta comunidade ou aquela. Não tinha fim. Ao fim de dois anos tínhamos mais de 150 filmes, podíamos fazer mais, mas já tínhamos uma representação vasta da diversidade.

Do Brasil vão para onde?
VM: Estamos a fazer projectos mais simples, se assim o pudermos dizer. Estamos a seguir o caminho do xamanismo em todo o mundo, mas também estamos a seguir o xamanismo aqui na Europa. Há muitas coisas. Há algum tempo fomos ao Chile para fazermos um projecto sobre os Mapuches, o povo do sul do Chile. Vamos viajando. Para nós é como uma missão, de despertar consciências, criar famílias, sementes de consciência. E usar todas estas formas de música e de cinema para misturar e abrir uma visão sobre a realidade, sobre o que é a realidade. Não é um “objecto físico”, é algo muito mais maleável. É isso que nos interessa.

Dentro de todos os pequenos planetas que foram construindo no mundo, qual é o fio condutor entre todos?
VM: A relação da Humanidade com os espíritos. Como estamos, ou não, em ligação com uma força superior. Alguns chamam Deus, ou Allah, ou Pachamama. A espiritualidade de cada um, cada um tem uma vida espiritual e temos de a trabalhar. Porque acho que o problema de um mundo tão consumista ou materialista, fascinada pelos seus próprios objectos, é que nos esquecemos da espiritualidade, de trabalhar a espiritualidade.

PT: Para mim é a vida, a cultura e a natureza. Acho que são os três eixos que trazem esta espiritualidade. Não é a ideia de cultura simples, mais a maneira que temos de viver juntos, porque estes rituais são culturais. Não é a cultura ocidental, é o que reside na base.

O filme-concerto Híbridos: Os Espíritos do Brasil Ao Vivo esteve na Madeira, na Culturgest e estará no dia 14 de Dezembro em Braga para uma última exibição no gnration/OCUPA, onde haverá uma masterclass.

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