“Vida Nova”, de Manel Cruz: a expressão do belo no essencial

por Linda Formiga,    4 Abril, 2019
“Vida Nova”, de Manel Cruz: a expressão do belo no essencial
Capa do disco + livro “Vida Nova”, de Manel Cruz
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António Lobo Antunes referiu por diversas vezes que, na sua procura incessante pela sua voz na escrita, rasgou inúmeros manuscritos dizendo em surdina, ou não, “ainda não é isto, ainda não é isto”.

Depois de três bandas (Ornatos Violeta, Supernada e Pluto) e de um projecto próprio com uma multidão de colaboradores, Manel Cruz viu-se a braços com uma rotina criativa interrompida e com uma certa indefinição do que era profissionalmente. Se por um lado as artes gráficas são a área em que se sente à vontade, por outro, a música é onde se liberta. E é nesta encruzilhada que, vários anos volvidos após o lançamento de “Nada é Possível” dos Supernada, Manel Cruz se obriga, durante quatro meses, a fazer do estúdio o seu escritório e a criar músicas, todos os dias, dizendo para várias vezes – calculamos nós – “ainda não é isto” e a, gradualmente, encontrar a sua voz, a sua escrita e algo que sente como verdadeiramente seu. O resultado está no primeiro álbum em nome próprio, “Vida Nova”, um conjunto de 12 canções compostas maioritariamente em ukelele. A sonoridade é tão simples como o instrumento, sem que esta simplicidade torne a composição banal ou pouco interessante. Não tem o experimentalismo de Foge Foge Bandido, mas tem-lhe a base em certas cadências, na percussão e nas letras, mais fragmentadas.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

A intenção de “Vida Nova” é definida na canção que abre a música “como um bom filho do vento”, onde Manel Cruz canta “um outro homem, uma outra vida (…) ando a ver se me invento”, dando o mote para as 11 canções que se seguem.

Não encontramos, em cada uma das músicas, a rima fácil ou os temas banais, mas a humanidade e as dores de crescimento provocadas pelo passar dos anos e pelas dúvidas que nos assolam, a cada um de nós. Como quando o ouvimos versar sobre a coragem em “Anjo incrível”, sobre a independência natural da mulher em “O navio dela” ou sobre o quão avassalador é o amor, todos os tipos de amor. É em “Cães e Ossos” que temos a lírica mais complexa de todo o álbum, com Agostinho da Silva a dar o mote a uma desconstrução imagética do que é Deus.

As letras de Manel Cruz cresceram com a vivência do autor e a luta pelo desfecho, pelo resultado que lemos e ouvimos nesta Vida Nova, está presente e é palpável. Não se sentem quebras, ou momentos menos conseguidos, sente-se a humildade do processo. A última canção começa com “depois de passada a prova, penso em vida nova”, numa sugestão que a voz foi encontrada, e que as tormentas do “ainda não é isto” deixaram de existir.

“Vida Nova” surge-nos sob a forma de livro, de capa branca, com as 8 letras do título a negro, numa perfeita antítese com o turbilhão de imagens e de letras manuscritas em paredes no interior do livro. Não é um disco imediato, é para se ir descobrindo, ouvindo, na aparente simplicidade melódica, na aparente simplicidade lírica e observar como ambas se intrincam e navegam na complexidade da Vida Nova de Manel Cruz, que se consolida como um dos maiores cantautores da música portuguesa.

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