Viagem à Índia: a singularidade de um país

por Marta Vicente,    28 Junho, 2018
Viagem à Índia: a singularidade de um país
Fotografia de Marta Vicente
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Decidi aventurar-me no que sinto ser uma tarefa complicada: escrever sobre a Índia e relatar uma data de emoções e sentimentos vividos a partir do momento em que se aterra neste país. Escrever pensamentos e reflexões acerca do mesmo não me parece suficiente nem justo. Por um lado insuficiente, porque é difícil as palavras refletirem o que sentimos na pele, por outro injusto, porque cada viagem é única e os caminhos percorridos diferentes (talvez seja, apenas, uma questão de opinião e não precise de trocar as voltas às palavras).

À data da publicação da minha crónica, foi publicado, pela Fundação Thomson Reuters, um estudo sobre os países mais perigosos para as mulheres, onde a Índia lidera o ranking – facto que torna urgente aventurar-me na tarefa descrita anteriormente. Isto não espanta quem conhece minimamente o país, ou porque já leu qualquer coisa sobre ele, ou porque já o viu com os próprios olhos, fora da piscina do hotel e longe das grandes atrações turísticas. Na realidade, basta aterrar num dos seus aeroportos e, enquanto se espera pelo próximo voo, a cultura machista torna-se visível. Foi, exatamente, quando me encontrava a fazer escala em Bombai que fui confrontada com esta realidade. O aeroporto dessa mesma cidade – limpo, harmonioso e organizado – prepara-nos para o oposto daquilo que vamos encontrar fora dele, no entanto, algo permanece igual e é, até, mais percetível: a diferença entre o número de homens e de mulheres. A segurança do aeroporto encontra-se separada por sexo e, enquanto eu esperava numa fila única de quatro mulheres, os homens podiam escolher entre cinco ou seis filas diferentes, cada uma com cerca de dez pessoas – a explicação encontra-se no infanticídio feminino, frequente no país e justificado pela crença na superioridade do homem.

Fotografia de Marta Vicente

Caminhar por ruas indianas não é fácil – mesmo quando nos perdemos a olhar para a imponente arquitetura que nos rodeia –, mas ser mulher e fazê-lo torna-se ainda mais complicado. Ainda que passe o meu tempo a aventurar-me pela cidade, sozinha ou acompanhada, não sinto segurança: os olhares recaem sobre as mulheres de forma pesada. O tráfico humano para trabalho doméstico, a escravidão, o abuso sexual e o casamento prematuro e forçado são apenas alguns dos fatores que colocam a Índia na liderança. Houve um dia em que perguntaram a uma das pessoas que conheci se tinha irmãs para casar; num outro dia, uma criança de vestido correu a praia atrás de nós, puxando-nos pelo braço e pedindo dinheiro – sabíamos que não podíamos dar porque isso seria alimentar a rede de tráfico que a suporta.

Fotografia de Marta Vicente

Impotência e revolta são, talvez, os sentimentos que mais tenho experienciado. A sensação de inutilidade aperta-me o pescoço, torna o ar difícil de respirar. As pessoas acumulam-se nas ruas a dormir com as mãos a apoiar a cabeça, ignoram o barulho que as rodeia, os cães e o cheiro do lixo. Os passeios são armadilhas fáceis para se cair, os caixotes do lixo são insuficientes para um país que já alcançou o segundo lugar na lista dos mais populosos do mundo e, como consequência, este espalha-se ao seu redor e raramente é retirado. Os cães reproduzem-se na rua em número elevado, as pessoas desviam-se para as vacas passarem e alimentam-nas. Por volta das três da tarde, acumulam-se crianças de uniforme na cidade, acabadas de sair da escola. O trânsito é caótico durante todas as horas em que o sol brilha, buzina-se porque sim e porque não, não se respeitam semáforos e os sinais de trânsito nem existem. As motas são imensas e tanto transportam uma pessoa como toda a família. O calor e a humidade fazem-se sentir, as pessoas, já habituadas, transpiram e respiram mal. É, também, o hábito que as faz agradecer e cumprimentar, apenas, com um suave rodopiar de cabeça. Lava-se roupa nas ruas e os muros tornam-se expositores de peças coloridas. O mar já não é azul e, apenas, os homens mergulham nele.

Fotografia de Marta Vicente

A Índia é isto e uma outra data de coisas: é caos, ruído e desorganização. No entanto, é em todas estas caraterísticas, à primeira vista negativas, que reside a excecionalidade e a beleza do país. Desde os inúmeros templos, aos mil e um restaurantes diferentes que não largam o picante, ao ruído das motas que fazem o vento passar pela nossa cara e aliviam o calor, passando pela impossibilidade de andar confortavelmente sem algum carro a buzinar para que nos desviemos do seu caminho, a Índia constrói-se sobre uma desordem incrível. É, ainda, diversidade: na roupa, na língua, na dieta adotada, na forma de encarar a religião; na verdade, a palavra diversidade atenua uma realidade que não deve ser, de forma alguma, suavizada: as castas. É nelas que reside um dos maiores obstáculos ao avanço da esfera social indiana. Enquanto o país se afirma como um dos mais avançados tecnologicamente, grande parte da sua população não tem saneamento básico em casa; enquanto a Apple decide começar a fabricar novos iphones aqui, grande parte da população não tem acesso à educação ou abandona-a precocemente; enquanto alguns têm direito a bons cuidados de saúde, a grande maioria não pode sequer dirigir-se a um hospital porque não possui documentação que comprove a sua nacionalidade.

O mexicano Octavio Paz escrevia no seu ensaio sobre o país, intitulado, “Vislumbres da Índia”, que “O homem é os homens: cada um de nós é diferente. E, no entanto, somos todos idênticos” e esta parece-me ser uma das chaves para a compreensão do país. É necessário assimilarmos as diferenças para conseguirmos descobrir as semelhanças, em número muito mais elevado, e tentar dar um passo em frente: agir, fazer, construir, realizar. Não basta sonhar e imaginar. É preciso que a Índia saiba como terminar com tradições antigas desajustadas; é preciso, igualmente, que saiba como conservar outras, como forma de manutenção da identidade. Em suma, a Índia vive-se, cheira-se, sente-se, observa-se, no fundo, abraça-se. Não conheço, ainda, muitos dos sentimentos que irei levar comigo em agosto, quando regressar, mas a vontade de voltar e a urgência de agir já estão no fundo da mala.

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