Vai-se ao Curtas Vila do Conde pelos filmes ou pelas pessoas?

por Luís Azevedo,    18 Setembro, 2018
Vai-se ao Curtas Vila do Conde pelos filmes ou pelas pessoas?
“Placenta” (2018), de Paulo Lima
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Os dias finais do vigésimo sexto Curtas Vila do Conde traziam consigo um sentimento de melancolia que se apoderou de muitos de nós. Estávamos perto do fim de uma semana cheia de bom cinema, exposições, concertos e conversas entre cineastas, à volta da mesa de um café, depois de uma sessão tardia. Estava entre cineastas, críticos de cinema, aspirantes a críticos de cinema, académicos e um médico. Falávamos de filmes. Falávamos, também, de espectáculos, mitologia grega, terminologia médica e gramática, até que a conversa chegou à conclusão que roubo aqui para a mim introdução: “Mas afinal estamos aqui porquê, pelos filmes ou pelas pessoas?”

Estávamos num festival de cinema, por isso a resposta parecia óbvia. O Curtas é um dos festivais mais respeitados do país, palco de bom cinema há mais de um quarto de século, para não dizer vinte e seis anos! O sucesso das curtas-metragens portuguesas em festivais internacional está intrinsecamente ligado a este certame à beira mar plantado, fomentador dos artistas nacionais que fazem cinema de quarenta minutos ou menos.

A competição vai desde as melhores curtas de realizadores estreantes, oriundos de diversas partes do mundo, a veteranos com prestigiosas carreiras, nascidos a meia dúzia de passos do Teatro Municipal de Vila do Conde. Este ano coube aos mais novos brilhar. Amor, Avenidas Novas foi o vencedor da competição estudantil, mas a sua vibrante meta-linguagem e excelentes momentos cómicos, não destoariam na competição principal. Onde vai o Verão (Episódios da Juventude), outro trabalho de um estudante (e da mesma escola, ESCTC – Escola Superior de Teatro e Cinema), não só competiu com os graúdos, mas saiu de Vila do Conde com o prémio maior da competição nacional.

A programação do festival só fortalece o argumento de que se não formos a Vila do Conde pelos filmes, devíamos. Não há distinção entre documentário, animação ou ficção. A equipa de programadores apenas separa por género as secções de experimental e vídeos musicais. Numa sessão podíamos ver de seguida uma ficção sobre gravidez com laivos de Nicolas Winding-Refn (Sheila) e um filme noir a preto-e-branco animado, sobre Natália, uma empregada de escritório de um banco de corações (Entre Sombras, o vencedor do prémio do público). Depois de cada sessão eclética, o público juntava-se à porta do teatro para discutir os filmes. Numa dessas conversas, falava-se das conexões temáticas e tonais entre os filmes da sessão anterior, quando surgiu a questão: pode o programador ser um autor?

Filmes 1, Pessoas 0.

Todos os dias o festival agendava conversas entre os cineastas que partilharam a tela no dia anterior. Quatro ou cinco realizadores, um ou dois moderadores e multidões de diferentes tamanhos, encorajados a partilhar taças de vinho e cálices de Porto no lounge do teatro. O falar – e o beber – começava no lounge, mas o ponto alto do festival era lá fora, não longe,  no decorrer de conversas informais entre cervejas, cigarros, vape pens e uma ou outra kombucha.

Filmes 1, Pessoas 1.

O Curtas parece arquitectado para fomentar ligações. O festival tem sede a trinta quilómetros do Porto, da cidade grande, da vasta oferta cultural. Decorre sempre no início do Verão, durante as primeiras semanas de Julho, justamente quando o sol se desenvencilha das nuvens de vez, mas antes da invasão de povos temporariamente nómadas que abundam para Vila do Conde à procura da areia das praias e do açúcar das bolas de berlim. Ao contrário da maioria dos festivais de cinema, os filmes são maioritariamente exibidos numa única localização, confinando assim os cinéfilos às trincheiras do teatro. Quem fica para a semana toda vai inevitavelmente encontrar lá a nata – e a borra – da indústria cinematográfica portuguesa.

A identidade do Curtas é construída à volta das figuras grandes do cinema português, assim como dos estreantes que são encorajados a voltar. Em 1999 Miguel Gomes levou a Vila do Conde o seu filme de estreia e saiu de lá com um prémio. Quase todos os anos volta ao festival, tal como os recém laureados do festival de Berlim, Leonor Telles e João Salaviza, e João Pedro Rodrigues, vencedor de Locarno. O trabalho dos cineastas é incentivado desde as primeiras curtas-metragens até as longas, por isso quando os realizadores dizem que se sentem em casa em Vila do Conde, parte de uma família, é fácil acreditar.

Filmes 1, Pessoas 2.

Uma das figuras maiores do festival esteve presente na última – e melhor – sessão da competição nacional. Estava a subir as escadas da sala principal quando encontrei uma cara amiga na plateia, ao lado do melhor lugar vazio a sul da fila E. Continuei a subir e virei à esquerda até me deparar com um obstáculo na bifurcação escolhida. Olho para baixo e vejo os joelhos ossudos do Paulo Branco, o infame productor/super-vilão português. Eventualmente, e sem recorrer a tribunais, Branco deixou-me passar. Lá me sentei, confortavelmente, a tempo do Declive, o filme de 6 minutos de Eduardo Brito. Foi um bom começo. A segunda curta foi Sara F., uma combinação de imagens retiradas da internet, editadas a um ritmo alucinante, e um esquisso realista de uma adolescente vítima de bullying. O filme é um retrato lancinante acerca da omnipresença de dispositivos móveis nas nossas vidas. Apropriadamente, toca um telemóvel. Depois do crime, a infâmia. O dono do dispositivo não só o atende como escolhe dizer com bravura: “Não posso falar agora. Estou no cinema.” Era Branco, está claro.

O último filme da sessão foi Placenta, a brilhante estreia de Paulo Lima. Num festival cheio de filmes arrojados como Anteu de João Vladimiro ou a misteriosa animação Agouro, Placenta foi o filme mais ousado que vi. Um exercício ponderativo filmado em montanhas portuguesas, conectado por fragmentos narrativos e sons evocativos da natureza; o vento que sopra, os pássaros que chilreiam, um sapo que coaxa, um ramo que se parte e o Paulo Branco que não se cala. Ainda insatisfeito com a polémica com Terry Gilliam, na qual prolongou o pesadelo quixótico do malogrado realizador, Branco trouxe o seu toque de Midas a esta sessão.

Depois de mais de uma semana de bons filmes, exposições, concertos e conversas, a pergunta mantém-se: “Mas afinal estamos aqui porquê, pelos filmes ou pelas pessoas?” Este ano a resposta não foi contundente, mas para o ano que vem parece-me que a resposta é clara: “Nem um nem outro, estamos aqui é para mandar calar o Paulo Branco.

Pessoas e Filmes 1, Branco 0.

(Nota: esta crónica foi publicada originalmente no MUBI/Notebook, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização)

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