Vai mas é trabalhar, ó “artista”

por João Estróia Vieira,    11 Junho, 2020
Vai mas é trabalhar, ó “artista”
Amendoeira em Flor, 1890 / Pintura de Vincent van Gogh
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Nunca ousei perguntar porque é que estavam a chamar “artista” a alguém que não fazia nada da vida. Para mim um artista era e é-o precisamente pelo contrário, por fazer ou criar alguma coisa.

Desde cedo me lembro que a expressão “artista” me foi causando confusão, sobretudo porque era dita em contextos em que eu não entendia o seu uso. Entre adultos ia ouvindo, de vez em quando, um “esse “artista”? Não faz nada da vida!”, mas nunca ousei perguntar porque é que estavam a chamar “artista” a alguém que não fazia nada da vida. Para mim um artista era e é-o precisamente pelo contrário, por fazer ou criar alguma coisa. Não sei se já perderam tempo a ir ao dicionário ver o que a palavra “artista” queria dizer. Sempre soube o que era um artista, mas por vícios intrínsecos à nossa cultura popular, também me comecei a aperceber o que para muitos era, afinal, “um artista”. No dicionário online da Priberam um “artista” aparece como alguém que se dedica, pratica ou interpreta uma arte, mas não só. Um “artista” é também um “impostor” ou um “manhoso”.

Procurei algum sentido nesta referência tão portuguesa na origem etimológica da palavra, mas “arte” é do latim “ars”, que significa “arte, técnica”. É em nós, enquanto sociedade, que começa o descrédito ao (verdadeiro) artista. A sua arte sempre foi vista como um passatempo por nós, porque só a vemos como passatempo (ou seja, quando temos tempo extra fora do horário laboral). Daí que digamos de boca cheia para o artista ir trabalhar, ignorando que aquele é, de facto, o seu trabalho.

Tentei encontrar algum sentido nisto. Alguma origem que explicasse o pensamento por trás da palavra “artista”, usada com esta conotação negativa. A única linha de pensamento que descortino, é algo relacionado com os actores, que, na mente simples de muitos, se fazem passar pelo que não são. Não podia ser mais errado, como Ernesto Sampaio refere a certa altura sobre o actor “nunca se trata de reproduzir um fragmento do real, mas sim de exprimi-lo. Por outras palavras, não se trata de ‘viver’ as personagens, de entrar na sua pele, mas sim parece-me mais produtivo dar testemunho delas. E isto é muito mais difícil técnica e esteticamente, do que recorrer a truques de efeito garantido junto de um público desprevenido: pausas que imitam a gravidade, gritarias que imitam a exaltação, caretas e agitações grotescas que procuram imitar a angústia ou o nervosismo, etc.” O Ernesto Sampaio que me perdoe por usar este trecho do seu maravilhoso “Fernanda”, em homenagem à sua mulher, mas não poderia concordar mais com o referido e ele coloca-o tão melhor que eu por palavras. Ao único tipo de artista que faria sentido chamarmos impostor, por se poder fazer passar por outrem, isso na realidade também não acontece. O actor não é nem nunca poderia ser um impostor.

Concluo portanto pelo erro histórico do uso pejorativo de uma palavra que significa, obrigatoriamente, alguém que tenha criado arte. A única explicação minimamente plausível e lógica é uma troca entre “artista” e “artífice”, pois este último é alguém que cria algo, inventa e cuja palavra está ligada a “artificial”. Não tentarei mais arranjar explicações onde elas não devem existir, mas finalizo com um pedido de consciencialização sobre a mensagem que passamos quando utilizamos a palavra “artista” para nos referirmos a uma pessoa desconfiável.

Para boa parte das pessoas um artista é alguém que vive de subsídios, de peditório pelas ruas e um sem mais de considerações geralmente absurdas. A grande maioria dos artistas vive, é certo, em dificuldade, mas por culpa de um Estado e de um sistema que pouco ou nada os protege. Veja-se o exemplo da Casa da Música do Porto, que entretanto “dispensou” uma série de trabalhadores. A Casa da Música, como tantas outras instituições por este país fora, são fortemente financiadas pelo Estado, mas promovem a título individual – e com as entidades estatais a fechar os olhos a isso -, práticas completamente precárias como os falsos recibos verdes, ou trabalhos para os quais as pessoas são chamadas poucos dias antes, sem qualquer documento escrito ou assinado probatório da prestação de serviços realizada. Esta situação é mais que recorrente em muitas Câmaras do país e desengane-se quem acha ser um problema de Direita ou Esquerda. Muitas das vezes é até em autarquias cujos partidos a nível nacional são os “maiores” reivindicadores de melhores condições aos trabalhadores, que estas práticas são usadas. E porque é que as pessoas as aceitam, pergunta o leitor com o seu ordenado fixo ao fim do mês ou com contrato de trabalho? Porque precisam de comer e porque se não forem elas a aceitar essas condições precárias outro as aceitará – é “o mercado a regular-se”, dirão os liberais. Por mais bonita que essa ideia possa soar, os “ideais” não matam a fome.

Todos estes vícios são sistémicos e partem do topo de uma pirâmide que tem revelado franca incapacidade em dar resposta às dificuldades que já se sentiam desde sempre, mas que a pandemia colocou (ainda mais) a nú. Como solução, além de pedidos de apoios que tardam em ter respostas e que ficam aquém do expectável, tivemos ainda a ideia do TV Fest, uma iniciativa do Ministério da Cultura em formato piramidal (a fazer lembrar algo vindo da Herbalife) onde os convidados iam sendo os próprios curadores de um espectáculo que tinha a alocação de 1 milhão de euros. Ora, em primeira instância não cabe ao Ministério da Cultura promover iniciativas do género. Em segundo, os vícios do formato (o tal esquema piramidal) fariam com que houvesse uma clara rede de influências e conhecimentos que se sobreporiam e impedem uma justa e equitativa distribuição do dinheiro por quem está no meio musical, e terceiro, numa altura como esta, é no mínimo de mau gosto alocar um milhão para um só sector, começando desde logo com músicos reconhecidos à partida, e esquecer todos os outro agentes culturais e artistas das mais diversas áreas em Portugal.

Como resposta e medida exculpatória, há poucos dias o Governo anunciou que iria abrir uma linha de 30 milhões de euros para que os municípios pudessem programar actividades culturais. Passemos então à crítica. Por um lado, continua em falta medidas estruturais e permanentes na defesa de situações como as que acontecem hoje em dia para que as evitemos repetir no futuro. Políticas de protecção concretas aos agentes culturais (que muitas das vezes nos esquecemos que não englobam apenas os artistas em si mas também técnicos, produtores, etc, etc). Por outro lado, presume-se uma isenção que nem sempre acontece por parte dos órgãos de poder local, muito por culpa de favores, preferências partidárias ou conhecimentos. Juntando a isto o facto de estarmos a um ano de autárquicas então está aberto o caminho para decisões que podem ser muito questionáveis por parte das autarquias locais, repletas, por vezes, de vícios já aqui referidos (e outro facto: muitos dos pagamentos só são efectuados vários meses depois da prestação de serviços por estarem dependentes da aprovação de orçamentos ou incompetência de quem trata dessas questões). Ainda neste tópico, muitas das vezes parte desse dinheiro vai das autarquias para as Associações de festas que contratam artistas de fora, lhes pagam pelo serviço prestado, mas que aos locais exigem que demonstrem “amor pela terra” e lhes pagam com “visibilidade” ou bebidas (quantos casos destes não conhecemos?). Se deveria haver alguém a valorizar os artistas locais deveriam ser precisamente as instituições da terra, pelo que o argumento usado causa espécie. Mais uma vez, com esta “linha de apoio”, o Governo e o Ministério lavam as mãos de qualquer crítica pois não serão eles a gerir e distribuir esse dinheiro e os artistas continuam assim entregues a um destino incerto.

Numa sociedade que nunca fez por valorizá-los, não pode ser atribuída ao sector cultural a culpa deles não saberem atribuir um valor a eles mesmos. Uma das últimas infelizes vozes nesse sentido foi Joana Latino, jornalista da SIC, que criticou os “discursos miserabilistas e de autocomiseração” dos artistas, usando como exemplo de uma boa prática os directos de Bruno Nogueira no instagram durante a pandemia. Além da infelicidade óbvia que acompanha tudo o que a Joana Latino fez nos últimos tempos, demonstrando uma falta de profissionalismo e tacto em tudo onde esteve envolvida, a comparação não tem sentido. Nem o programa do Bruno gerou rendimentos a qualquer um dos protagonistas – nem foi feito com o propósito de o fazer -, mas mais importante, estamos a falar de um grupo de artistas já conhecidos e que é a ponta mais ténue de um iceberg repleto de artistas portugueses completamente sem apoios ou rendimentos, em suma, ao deus-dará.

O único e incomensurável defeito do artista é que lhe pedem que defenda a sua classe falando em números quando ele só está habituado a falar com a alma. Não é aos agentes culturais que cabe essa tarefa, é a quem tem a tutela de defender os seus interesses. Para mim, artista é e será sempre sem aspas. É também muito importante que mal possamos contribuamos todos na medida das nossas possibilidades para ajudar a que de uma vez por todas, os artistas sejam valorizados. Ao contrário do que se pensa não se alimentam de palmas.

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