Um Valete entre as Damas (ofendidas)

por Rui Cruz,    22 Setembro, 2019
Um Valete entre as Damas (ofendidas)
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Então o Valete lançou uma música nova (“BFF”) e as redes sociais explodiram porque, de repente, a música dele mata mulheres ou incentiva a matar, não é? Não, não é. Quer dizer… é, mas para meia dúzia de Damas ofendidas que, sabe-se lá porquê, têm exposição mediática. Até nisto somos um país pequeno. Nos EUA os rappers têm beefs com outros rappers, gangs e celebridades, cá têm com feministas, cronistas a brincar ao jornalismo e o Diogo Faro.

Não vou entrar na discussão sobre a qualidade da música, primeiro porque é irrelevante para a questão, segundo porque não estou habilitado (não sou propriamente um fã da cultura hip hop), mas vou entrar na discussão sobre os malefícios da mesma e sobre a hipocrisia dos ofendidos. É que não consigo não rir quando leio coisas como as que li sobre a música em questão

Há quem diga que a música legitima a violência doméstica porque esta conta a história de um bacano que encontra a mulher na cama com o melhor amigo e decide matá-los com uma caçadeira. Quer dizer… na verdade, nem os mata porque tudo não se passou de um sonho, mas isso são pormenores. Mas gosto do raciocínio desta malta. É que com isto estão a confirmar que o Marilyn Manson é de facto o culpado pelo Massacre de Columbine, certo? A lógica assim o diz. E sim, eu sei que é puxado estar a trazer a lógica para este assunto.

Depois há outros que dizem que a música é sexista porque o suposto assassino mata a mulher. Certo. E o amigo também. Se, de facto, isto fosse real, este senhor tinha limpado o sebo à mulher e ao melhor amigo. Duas vítimas, dois sexos diferentes, mas que se lixe o amigo. Tem pila? Não conta e provavelmente até mereceu. Porque tem pila. Se estamos a falar de igualdade, este suposto assassino fez mais por ela do que as fotos do Albano Jerónimo de batom. Um tiro a cada, sem gender bullet gap. Mas mais giro ainda é ver esta maralha aos berros com o alegado sexismo desta música enquanto abanam o rabo ao som de letras como “E aê… Boca de pêlo! Tu tá beijando a mina que mamou o bonde inteiro!” ou “se for para não dar a buceta é melhor nem pedir meu whatsapp” num bar qualquer do Cais do Sodré. Porque aí é só divertido e “nesta música é preciso é sentir o ritmo” e “descontrai! Isto é só para dançar, é fun”.

Temos ainda aqueles que “têm medo” que esta música leve criancinhas a crescerem com desejo de matar mulheres (mais uma vez só mulheres, o amigo é um dano colateral), criancinhas que não são o público alvo do artista, criancinhas que podem ficar transtornadas com a letra e o vídeo da música, mas que só têm acesso à mesma porque os papás lhe dão um ipad para a mão para estarem caladas e não os chatearem e que têm dificuldades em interpretar texto ou apreciar arte porque os mesmos papás estão-se bem a lixar para a sua educação intelectual e o único programa cultural que fizeram em conjunto foi ir à Feira do Queijo e do Enchido porque queriam encher a mula.

E, por fim, temos os surfistas. Os mesmos de sempre, os que andam constantemente em busca das indignações do dia para, através de posts que são uma caixa de ressonância de opiniões disparatadas disfarçadas de preocupação com a sociedade, tentarem ganhar uns likes, uns seguidores e passarem mais uma vez por santos de impecável moral. Os mesmos que hoje criticam a música e o artista que a criou, mas que amanhã vão estar num concerto do Valete a fazer stories porque o rap está na moda e a moda fica bem nos perfis de instagram. Estes sim, nocivos para qualquer sociedade que se queira sã. O pior é que esta discussão toda foi totalmente contraproducente para estas Damas ofendidas (e eu sei que dizer Damas vai ser criticado, porque há homens e mulheres neste grupo, logo sexismo). É que com isto só deram mais visibilidade a uma música que acharam criminosa, mas isso pouco lhes interessa, porque a visibilidade que deram à música não se compara com a visibilidade que eles próprios tiveram. E isso, afinal, é o que conta aqui.

No fim, o que fica disto tudo é: o Valete lançou uma música, música essa que conta uma história, como milhares de músicas antes dela. Arte é um bocado isso, uma forma de contar histórias, sejam elas bonitas ou feias, violentas ou pacifistas, sobre crianças que se chamam Ana e vão à praia ou sobre homens maduros que fodem putas e apostam em cavalos, sobre filhos de Deus que ressuscitam ou sobre gajos que nascem na manjedoura ao lado da do filho de Deus e não ressuscitam, mas cantam quando crucificados. E a arte sempre ofendeu e sempre esteve sujeita a crítica, o que é absurdo é que, em 2019, se continue a não perceber que uma história é uma história e que a arte imita a vida, não o contrário. Se ficaram chocados com uma música sobre violência doméstica, pensem que ela existe porque existe violência doméstica, e não contrário. Se não fosse assim, o problema da violência doméstica seria bem mais fácil de resolver, bastava não falar dele. E como se tem vindo a ver, pelo dinheiro que algumas agências funerárias têm feito ao longo dos anos, incluindo este, isso não tem dado, propriamente, bons resultados.

Bilhetes para espectáculo “Como Todos Fazem”, de Rui Cruz, em:

https://ticketline.sapo.pt/en/evento/como-todos-fazem-rui-cruz-45432

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