Uma quarentena orwelliana

por Romão Rodrigues,    15 Março, 2020
Uma quarentena orwelliana
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A ideia de que o ser humano, a sua personalidade e aquilo que se edifica a partir dela dependem e são diretamente influenciados pelas atividades que prontamente desempenham e pela carga recreativa das mesmas é uma perceção tida desde os primórdios da humanidade, embora o parecer se produzisse através de urros e gritos primatas. Convenhamos, a repetição da frase cantada desencadearia um efeito de concordância no leitor e eu admito que a minha vontade é outra: com textos, pretendo despertar o lado crítico, a análise e o apontar de possíveis incorreções ou incongruências que possa ter cometido. Vamos ao que interessa, George Orwell e os seus manuscritos!

Antes que me teçam a interpretação indesejada, afirmo que não sou conhecedor da obra integral. Até à data, li 1984, A Quinta dos Animais e Livros e Cigarros. O primeiro contacto e cheiro, porque superiorizo e enalteço a leitura em papel, foi desgastante: a Guerra Civil Espanhola, os trotskistas, Estaline, o comunismo, as metáforas com pitadas desregradas de sarcasmo e verdadeiramente maciças erigidas “aos carneiros nos próprios países democráticos”. Ser enclausurado, voluntariamente, por temáticas que possuem tanto de febris como de intemporais não é pedir para marcar consulta no psiquiatra mais próximo, mas sim explorar e vivenciar, de outro modo, o passado e as suas contendas. A nova geração conhece o presente, teme o futuro e desvaloriza o passado. Isto, dito por um filho do online, da automatização e do clickbait.

A Quinta dos Animais é a fábula de leitura obrigatória na transição da adolescência para a maioridade, tal como aos imberbes se declama O Rei Leão, Os Três Porquinhos ou A Branca de Neve e os Sete Anões. Politicamente sobrecarregada e idealista até às entranhas, a obra adquire um caráter “contra comunista” e a crítica é prontificada e dirigida ao Estado capitalista soviético, esquecendo e colocando peneiras no capitalismo liberal. A desagregação do ser humano e a posterior transformação em animal assume uma dimensão estrutural e social gritantes, animais esses empestados por defeitos e falências de cariz espiritual, facto que comprova a humanização da escritura. Os suínos foram intitulados como “os mais inteligentes” e responsabilizavam-se pela chefia executiva e pelo pedestal da quinta. Ou seja, o motim constitui a analogia perfeita da realidade: a vassalagem prestada ao conjunto animal correspondente ao patronato impediu que uma nova rebelião se concretizasse. Os irracionais não foram dotados de espírito sindicalista. “Todos os animais são iguais. Mas uns são mais iguais do que os outros”. A certa altura, o ponto de partida confunde-se com o de chegada: o leitor cai na realidade, não percebe se está defronte de um conto personificado por porcos, se perante homens transformados em porcos. O convívio entre eles descrito no final da trama aleija a sagacidade de quem lê: aqui, presenciou-se a existência de canecas de vinho, tirania e o despotismo político.

1984 representa a atualidade no expoente da sua expressividade. Principescamente, ressalvam-se duas palavras: totalitarismo e formatação. O método mais nefasto e funesto de se politizar uma sociedade e a forma mais irresponsável e poluente de mecanizar a economia de qualquer nação. Daqui, advém a formatação, os seus discípulos e o véu da ignorância, estendido e sem dobras, cobre tudo o que passa. Se nas ditaduras as evoluções tecnológicas e científicas constituem um perigo iminente, ladeado por sucessivas bombas relógio (demarcadas pelo tic-tac frequente), nos estados democráticos a linha do gráfico correspondente à ameaça não estará longe da formulação presente no fascismo. Um dos motivos para a construção literária prendeu-se com o facto de George Orwell, em tempos de guerra, colaborar com a BBC, estação televisiva inglesa, e aí verificar o que hoje se diz ser temática recente: a manipulação do conteúdo informativo e a propaganda obscura realizada pela antiga União Soviética. O controlo computorizado repressivo, o uso desmedido do poder e a espécie de carnificina mental envolvem a população ficcional. Na obra, em determinadas passagens, as marcas e as lembranças da Catalunha, aquando do período de Guerra Civil, – que viveu de perto – estão bem patentes, bem como a presença assídua da ideia de um Estado que priva a liberdade e raciona as atitudes de cada pessoa conforme os parâmetros impostos pelo Big Brother. A sociedade distópica colocou no seu seio marionetas ao serviço do Estado e este lá ia manobrando e puxando cada cordelinho da maneira que bem entendia…

Livros e Cigarros, comparativamente às duas anteriores, acaba por ser a obra menos densa do ponto de vista político e mais aprofundada e carregada de sentimento relativamente à infância e aos primórdios da sua existência. O livro não reproduz uma história com um fio condutor ou uma correlação de acontecimentos que, entrecruzados e encadeados entre si, são sementes do desenlace: as páginas estão grafadas com crónicas versáteis, que se estendem sobre temáticas variáveis como, por exemplo, a discussão sobre gastos em livros e a analogia a outros gastos (os vícios ditos de caráter irreversível ou outras atividade de lazer), traçando-se o ponto de situação. Destilam-se perguntas sobre os hábitos de leitura e observações sobre pessoas que frequentavam a loja onde ele trabalhava (“Memórias de um Livreiro”); Orwell questiona o sistema político e bica a liberdade de imprensa, à altura nula ou quase inexistente (“Prevenção da Literatura”) e coloca-se do lado do povo, reclamando consigo a falta de cuidados, de infraestruturas e de tudo e mais alguma coisa (“Um, Dois, Esquerda, Direita”). Além de tudo isto, a menção ao sistema educativo inglês (colégio de St. Cyprian’s): o livro encerra em chave de ouro, como um portentoso soneto. O leitor embevece-se nas suas palavras e assente com a cabeça, enxugando as lágrimas do rigor, da disciplina excessivamente severa e das sovas de que padeceu. Mais spoiler não me é permitido oferecer (“Ah, Ledos, Ledos Dias”) …

Apesar da distância geracional, sou um difusor nato da sua obra. Lê-lo é conhecer o passado de uma maneira distinta do que aqueles que efetivamente o conheceram e, consequentemente, manifestar um parecer diferente, sem ser contrário, do que se viveu, do que se lutou, do que se conquistou, do que se perdeu. O amor sentido pela disciplina de História influenciou esta seleção literária e a procura de qualquer obra em que tenha “posto o bedelho”.

Segue-se a leitura de Homenagem à Catalunha. Admito que haja quem me tenha dito que a homenagem só devia ter sido escrita após isso. Contudo, não gosto de ser comandado por Big Brothers…

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