Uma mulher que se vem

por Cláudia Lucas Chéu,    1 Junho, 2020
Uma mulher que se vem
Fotografia de Malvestida Magazine / Unsplash
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“No duche, tem vontade de se arranhar, de rasgar o corpo em dois. Bate com a testa na parede. Quer que a agarrem, que lhe partam o crânio contra o vidro. Assim que fecha os olhos, ouve os barulhos, os suspiros, os gritos, os golpes. Um homem nu que arqueja, uma mulher que se vem. Gostaria de ser um mero objecto no meio de uma horda, ser devorada, chupada, engolida de um trago. Gostaria que lhe beliscassem as mamas, que lhe mordessem a barriga. Quer ser uma boneca no jardim de um ogre.”

No Jardim do Ogre
, Leïla Slimani

O tema da mulher adúltera surgiu na literatura como uma bigorna na consciência social quanto à sexualidade do género feminino. Subitamente, a ficção parecia querer desmentir a natureza impoluta da mulher e pô-la ao mesmo nível do homem. Se sempre se justificaram os impulsos dos homens como algo próprio da sua natureza, às mulheres atribuía-se, pelo contrário, o carácter fiel e desinteressado pelo sexo, justificando-o com um sentimentalismo bacoco.

Anna Karenina, célebre protagonista do romance homónimo de Tolstói, surge na literatura e na sociedade da época como sendo traída pela sua própria natureza, e representa uma afronta às regras sociais estabelecidas pelo patriarcado hipócrita — as mulheres não traem, muito menos as casadas. O romance de Tolstói mostra uma mulher que obedece apenas às suas pulsões e que, apesar do julgamento feroz social e familiar, está completamente dominada pela sua vontade.

Também Flaubert e Eça escreveram sobre mulheres adúlteras na segunda metade do século XIX, todas castigadas com a morte — Anna, Ema e Luísa não sobrevivem ao desconsolo do amor nem à punição social. Comum a estas mulheres é o facto de se encontrarem sem escolha de permanecerem fiéis, apesar de estarem acompanhadas por maridos tão honestos e prosaicos.

No século XX e XXI, surgiram na literatura novas heroínas adúlteras (por exemplo, Lady Chatterley, de D. H. Lawrence), contudo, nenhuma superou o choque que causaram as protagonistas do século XIX.
Leïla Slimani, escritora marroquina que cresceu numa família de expressão francófona, vencedora do Prémio Gouncort em 2016, publicou em 2014 o romance No Jardim do Ogre (Alfaguara, 2018). Considerado por muitos a Madame Bovary do século XXI, esta é a narrativa de uma mulher casada que tem tudo para ser feliz, mas que paradoxalmente sente que lhe falta tudo. Todavia, ao contrário das paradigmáticas heroínas adúlteras do séc. XIX, Adèle (uma mulher casada e economicamente independente, embora deteste o seu trabalho) apenas procura satisfação sexual. Não há paixão nem sentimento. E a busca incessante pelo prazer sexual com quem se vai cruzando raramente lhe traz remorsos perante o cenário familiar idílico — um marido bondoso, médico conceituado, atraente, amigo, com quem tem uma boa relação íntima e sexual, e um filho ainda pequeno, que ama como as boas mães amam as suas crias. Então, por que trai Adèle o marido e põe em risco uma descoberta que a pode fazer perder tudo, incluindo o seu filho? Há um único motivo — o sexo. A sua satisfação sexual. O leitmotiv de tantos homens para a justificação do adultério, mas ainda olhado de soslaio e criticado quando é usado como argumento pelo género feminino.

Alguns apelidaram a personagem de Leïla de ninfomaníaca, mas tanto em No Jardim do Ogre como em Canção Doce, de 2016 (ambos editados em Portugal pela Alfaguara), o conflito não é de ordem patológica centra-se no desejo, nos problemas de intimidade e no sentimento de clausura que se encontra nas rotinas e no quotidiano. Além disso, vemos na atitude de Adèle a transgressão das normas sociais através do adultério, pesando o facto de se tratar de uma mulher, e de ainda estarmos longe de encarar as pulsões sexuais de igual modo em ambos os géneros (ou entender que o género pode nem ser binário, mas isso seria um outro texto). E não nos podemos esquecer que se trata de uma narrativa do século XXI, que coloca em perspectiva o comportamento da mulher casada nesta época.

Tal como a autora franco-marroquina, assumo também o fascínio por heroínas grandiosas (na vida e na literatura), com dimensão, e que desiludem; o desejo de conseguir mostrar de forma crua a sexualidade das mulheres, como um animal que se satisfaz, sem violência ou ternura, e segue o seu caminho; a tentativa de expor uma visão não sentimental do sexo por parte das mulheres. Sinto, como Leïla, a vontade de mostrar que a sexualidade é política, e que através dela acontecem várias ordens de submissão entre homens e mulheres, e entre pessoas do mesmo sexo.

Difícil é não rotular determinados comportamentos, assumi-los tal como são, sem juízo de valor. “Os homens vão pensar que é malandra, leviana, fácil. As mulheres vão rotulá-la de predadora, as mais indulgentes dirão que é frágil. Todos estarão enganados.” Fiquemo-nos pelas palavras da autora: “uma mulher que se vem”.

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