“Um Sétimo Homem”: John Berger narra o migrante colectivo

por Miguel Fernandes Duarte,    15 Julho, 2019
“Um Sétimo Homem”: John Berger narra o migrante colectivo
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John Berger, autor e crítico de arte inglês que alcançou notoriedade principalmente através do livro – e série da BBC – Modos de Ver, nunca teve medo de contestar os valores instalados. Em 1972, ao receber o Booker Prize pelo seu romance G., o autor inglês não poupou as palavras e criticou os patrocinadores do prémio, a empresa Booker-McConnall, pela exploração levada a cabo nas caraíbas ao longo de 130 anos. Às palavras juntou também os actos, doando metade do valor do prémio ao braço britânico do Black Panther Party e usando a outra metade para financiar um estudo sobre trabalhadores migrantes levado a cabo pelo próprio. O resultado desse trabalho havia sido pensado em formato vídeo, mas a limitação de recursos obrigou a uma mudança de planos e, com a ajuda do fotógrafo Suíço Jean Mohr, o resultado assumiu a forma de um livro: Um Sétimo Homem, originalmente editado em 1974 e agora finalmente traduzido para português pela Antígona.

Focando-se nos trabalhadores migrantes não-qualificados enquanto força de trabalho imprescindível aos países desenvolvidos da Europa (como Reino Unido, França e Alemanha), o livro está organizado em três partes: Partida, Trabalho e Regresso, respectivamente sobre cada uma destas partes na vida de um migrante arquetípico, contada em grande detalhe com a intenção de ser, ao mesmo tempo, específica e genérica. Lado a lado com um misto de factos, figuras, fotografias, poesia e teoria, tudo se alimenta para pôr a nu a experiência desumana da migração e a necessidade que os países desenvolvidos dela têm.

“Os trabalhadores migrantes são imortais: imortais porque continuamente substituíveis. Não nasceram: não foram criados: não envelhecem: não se cansam: não morrem. Têm uma só função – trabalhar.”

Como o próprio autor refere no prefácio que escreveu para a reedição inglesa da obra em 2010, apesar de completamente desactualizado estatisticamente, Um Sétimo Homem é um daqueles livros que, mais até do que ter mantido a sua pertinência, ganhou relevância com o passar do tempo. Num tempo em que a retórica anti-imigração assume novos patamares, este retrato da vida de um migrante colectivo é mais relevante que nunca.

John Berger por Eamonn McCabe / Getty Images

Os portugueses, um dos sujeitos colectivos do livro, podem, hoje em dia, já não necessitar de fugir de uma ditadura que os obrigava a passar clandestinamente fronteiras em direcção a um futuro melhor, mas, não só a necessidade de trabalho migrante continua a imperar entre os países mais desenvolvidos (até um país relativamente atrasado como Portugal recorre maioritariamente a trabalho migrante em sectores como a agricultura de larga escala), como os países que “exportavam” trabalhadores para as grandes metrópoles da europa desenvolvida, países como Portugal, Espanha, Grécia, Turquia ou ex-Jugoslávia, continuam, mesmo com a integração europeia, a ser locais francamente subdesenvolvidos se comparados com países como Alemanha e França. Até porque, no lugar da mão-de-obra não-diferenciada, Portugal exporta agora mão-de-obra especializada, recheada de qualificações, que é aliciada com condições bem superiores.

A mão-de-obra indiferenciada vem agora do Leste Europeu e, em grandíssima maioria, de fora de portas, e a Europa persiste enquanto fortaleza, usando o que está fora para alimentar o que está dentro: “O trabalhador nacional foi transformado em consumidor”. A recente vaga de migração para a Europa não é parte de uma mera crise, como se vê neste trabalho de Berger e Mohr, mas sim de um padrão e de uma tendência continuada. Muitos postos de trabalho industriais terão até sido deslocalizados para países estrangeiros onde a mão-de-obra é mais barata, diminuindo a necessidade de “importar” homens que os executem a esses preços mais baratos nos países desenvolvidos, mas a necessidade persiste: desaparecessem os trabalhadores migrantes e a economia europeia colapsaria.

“O migrante revela-se um trabalhador ideal […], quer sempre fazer horas extra. Está disponível para os turnos da noite. Chega politicamente inocente.” E, “embora os migrantes paguem impostos e contribuições para a segurança social, não terão acesso a muitos benefícios durante o período da sua estadia temporária. […] O seu custo para o sistema pode ser mantido num valor mínimo […]. É certo que podem enviar um terço do salário para fora do país, mas […] uma grande proporção do dinheiro enviado é gasta em bens manufacturados no país onde ele trabalha.”

O que Berger consegue fazer magistralmente é mostrar esta realidade através dum livro que é simultaneamente teórico, poético, ficcional, jornalístico, visual e político. As fotografias de Jean Mohr, não utilizadas para ilustrar cenas particulares e indivudais, mas como prova da existência de cenários e pessoas como as descritas, vão aparecendo como pedaços da realidade, melancólicas e brutas, esperançosas e inocentes. É essa a realidade que marca estes migrantes: iludidos por um futuro que lhes é apresentado como prometedor, rebaixados por uma vivência que faz deles puros objectos de força e trabalho. São carne para canhão. Não são homens, são meras funções, sem quaisquer direitos nem qualquer realidade fora do seu trabalho. São a matéria-prima do crescimento industrial. O local que abandonam, com a sua saída, torna-se ainda mais estagnado e, no local para onde vão, serão os últimos a ser contratados e os primeiros a ser despedidos, facilmente descartados assim que ficarem velhos ou doentes, substituídos por outros acabados de chegar.

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