Um seixo de Block Island

por Bernardo Crastes,    13 Maio, 2020
Um seixo de Block Island
Ilustração de Gabriel Margarido Pais. Seixo, sobreposto a um mapa de Block Island
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Neste período de quarentena, em que nos vemos obrigados a parar fisicamente, não há limites para onde a nossa mente nos pode levar. Olhando à volta do meu quarto, vejo objectos trazidos de viagens que fiz no passado e que, instantaneamente, espoletam memórias das mesmas. É uma forma de escapismo momentâneo que traz algum conforto em tempos incertos. Deixem-me levar-vos numa viagem à volta do meu quarto.

O segundo objecto é um seixo que trouxe de Block Island, uma pequena ilha ao largo da costa de Rhode Island. A meio caminho entre a costa da Nova Inglaterra e a ponta de Long Island, a ilha é conhecida entre locais, que aproveitam para passar fins-de-semana descansados nas suas longas praias, comer comida do mar e desligar-se da ocasionalmente incessante vida americana.

No ano passado, enquanto estive nos Estados Unidos em trabalho, todos os fins-de-semana eram utilizados para passear. Maioritariamente, passei os meus tempos livres no nordeste americano, na zona conhecida como Nova Inglaterra, aproveitando o bom clima do Verão para visitar as verdejantes regiões das Berkshires e da cordilheira Green Mountain, o paraíso da classe média-alta conhecido como Martha’s Vineyard e o destino de férias favorito desta zona, Cape Cod. Passei dias idílicos em vilas piscatórias, praias (quase) desertas e parques naturais repletos de lagos reluzentes e montanhas, a comer queijos locais, xarope de ácer, lagosta e até amêijoas apanhadas por mim num lago!

As paisagens, caminhos e situações que fui vivendo corresponderam à expectativa criada pelos inúmeros filmes e séries passados nos EUA, quase justificando toda a garra criativa e a génese de uma das indústrias cinematográficas mais potentes do mundo. O que quero eu dizer com isto? A maioria dos miradouros, aldeolas, estradas, casas, entre outros, com os quais me cruzava eram passíveis de fazer parte da direcção de arte de um filme. As minhas interacções com os locais pareciam fazer parte do argumento de um qualquer drama de viagem slice of life. No fundo, eu próprio me senti protagonista do meu próprio filme. Talvez isto seja resultado do bombardeamento cultural a que somos sujeitos por parte dos Estados Unidos, que me familiarizou com estas situações através dos grande e pequeno ecrãs, programando-me para ler todas estas situações e até interpretar qualquer sotaque americano como parte de uma obra criativa, numa espécie de ciclo de retroalimentação artístico — a arte imita a vida, a vida imita a arte e por aí em diante.

Uma das minhas expedições por este universo foi até ao destino maioritariamente frequentado por locais, Block Island, uma ilha do estado de Rhode Island (que não é ele próprio uma ilha). Desde a viagem de ferry a partir de Narragansett até ao almoço de mexilhões à tailandesa e lobster roll no Dead Eye Dick’s, vi-me rodeado do estilo de vida all-american de Nova Inglaterra, de clubes de campo, passeios de lancha e, digamos, privilégio branco. Enquanto me passeava na bicicleta alugada mais cara de que alguma vez ouvi falar, apesar do cansaço de pernas que me assolava em qualquer pequena elevação, sentia a despreocupação a apoderar-se de mim. Realmente, quem não gostaria de ter uma vida assim?

Um dos sítios a visitar era Mohegan Bluffs, onde uma escadaria de madeira pitoresca dava acesso a um areal intocado, ladeado de falésias lindas. Caminhando pela orla marítima, encontrei centenas de seixos rolados, cada um mais perfeito que o anterior. Enquanto apanhava sol e ouvia o mar, reflecti sobre como realmente me sentia, naquele que foi o ano mais complicado da minha vida até então, por diversos motivos. Mas naquele momento,  tudo estava bem. A pequena paz que senti fez-me querer levar comigo um pedaço daquele local. Escolhi o seixo rolado mais perfeito que encontrei, pois o emaranhado de sílica e/ou calcite sob uma aparência polida pareceu-me uma boa representação de mim naquele momento — um emaranhado de pensamentos e conflitos internos, sob a aparência tranquila de quem vive o profético sonho americano.

Apesar deste incerto 2020, a poeira do ano que passou assentou na minha vida e agora sinto-me mais seguro de mim mesmo que nunca. O modesto seixo que agora exponho num móvel do meu quarto é um pequeno souvenir dos momentos de tranquilidade que ajudaram a que chegasse a como me sinto hoje, moldado pelas ondas da vida.

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