Um palco vazio com fundo azul. Um homem e uma mulher, vestidos de branco, acabaram de se defrontar

por Frederico Lourenço,    14 Abril, 2018
Um palco vazio com fundo azul. Um homem e uma mulher, vestidos de branco, acabaram de se defrontar
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Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.

Um palco vazio com fundo azul. Um homem e uma mulher, vestidos de branco, acabaram de se defrontar, olhando-se numa longa diagonal. Estava fadado este encontro? Um pouco antes víramos a mulher dançando ao som da exposição (secção inicial) do primeiro andamento do Concerto em Sol Maior para piano de Ravel. A música progredira então até chegar à reexposição, altura em que a mulher de branco saíra de cena, cedendo o lugar ao homem vestido de branco, que, recém chegado ao palco, logo executara movimentos de dança análogos aos que a mulher havia dançado – quando não exactamente iguais. Desta forma, o genial coreógrafo Jerome Robbins sugere-nos a inevitabilidade do encontro destes dois seres no longo “pas de deux” que constitui a secção central deste maravilhoso bailado “In G Major” (estreado em 1975). Nada prova de forma tão clara a compatibilidade entre dois amantes como a mesma reacção à mesma música. Tinha de acontecer.

O defrontamento na longa diagonal começa em modo imóvel. Homem e mulher confrontam-se simplesmente um com o outro; o olhar dele constrói a imagem dela; o olhar dela constrói a imagem dele. A imobilidade em dança é como o silêncio na música e este espanto do “estar-diante” não precisa de ser expresso de forma explícita. Até porque é preciso primeiro ouvir a cadência de valsa nostálgica que o piano insinua, ainda sem qualquer acompanhamento da orquestra. Quando o movimento começa, é novamente sob o signo da mais elementar simplicidade. A mulher caminha devagar em direcção ao homem, mas a este avanço inicial segue-se logo um recuo. Ela avança novamente. Depois é ele que dá uns passos em frente para se aproximar dela, gesto a que ela responde recuando de novo. Depois avança ela de novo e recua ele. Avanços e recuos? É a dança do amor, pois claro. Agora recuam ambos. Mas de seguida dá-se uma súbita sintonia e ambos avançam ao mesmo tempo um em direcção ao outro. Olham-se, executam calmos passos giratórios como em que em jeito de cumprimento; de seguida assumem uma bela pose escultórica de costas voltadas, dir-se-ia como forma de cada um se despedir do seu individualismo. É que os movimentos daqui para a frente serão conjuntos. Agora tudo girará em torno da copulativa “e”: ele E ela. Como casal, já começaram a dar certo.

O primeiro passo executado verdadeiramente a dois é uma lenta pirueta em atitude, executada pela mulher, tendo como único apoio a mão do homem, que lhe segura a mão por cima da cabeça. A partir deste momento o olhar do público está nela, pois é à mulher que aqui cabe a “verbalização” coreográfica do discurso constituído por esta demorada conversa de amantes. Ela é mais eloquente do que ele, ela sabe encontrar as frases que exprimem os sentimentos de ambos; ele só precisa de estar atento ao que ela está a expressar: o amor dele quer-se reactivo. Dela são os gestos mais polissémicos, mas também os mais subtis; ele serve sobretudo de apoio, ainda que em vários momentos a acompanhe em expressivos movimentos de braços e em discretos passos giratórios.

Como é habitual no bailado clássico, cabe também ao homem o papel de levantar a mulher do chão. Neste diálogo são vários os momentos em que a mulher levita simplesmente, erguida acima do chão pela intensidade do discurso silencioso que lhe chega do seu amante. Porque se ela atinge todas as alturas da eloquência, é dele que parte a combustão emotiva que põe ambos a carburar. Atento a cada gesto dela, cada olhar com que ele a observa torna-a mais presente, mais real à nossa vista. O amor não é nada se não constituir um acto de percepção maior, em que o olhar de quem ama reforça a materialidade ontológica da pessoa amada. Quando somos verdadeiramente amados, sentimo-nos duplamente nós mesmos.

Embora a coreografia nos dê ainda a ver pequenos avanços e recuos (pois nenhum amor existe sem eles), agora o espaço interposto entre ambos é mais a circulação de ar necessária para que a combustão possa permanecer ardente. Em dois momentos, o ligeiro afastamento entre o par é pontuado por um gesto dele, que abre os braços convidando-a a nova reaproximação. Os gestos elevados dos “port de bras”, as alturas dos “developpés” e os próprios levantamentos do chão (“lifts”) marcam um movimento ascensional, que culmina no último lift de todos, em que a mulher segurada por cima da cabeça do homem, estendendo a perna em ângulo inequivocamente fálico, surge já como parte de um corpo duplo; como composição escultórica de dois corpos que, saindo de cena para consumar o seu amor, agora são só um.

(intérpretes: Marie-Agnès Gillot e Florian Magnenet)

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