Tune-Yards: uma volta ao mundo e à consciência de cada um

por Tiago Mendes,    30 Janeiro, 2018
Tune-Yards: uma volta ao mundo e à consciência de cada um
PUB

A música de dança alternativa propõe-se, constantemente, a ser isso mesmo: uma alternativa, uma diferença. Por isso, de ano para ano, o significado do termo vai-se alterando. É sempre necessário experimentar algo novo, testar. I Can Feel You Creep Into My Private Life propõe-se a fazê-lo. É o regresso dos Tune-Yards, após o lançamento de Nikki Nack em 2014. Este novo surge como o quarto álbum de uma consistente carreira, que se tem vindo a construir ao longo da última década, fundada sob o génio criativo de Merrill Garbus – acompanhada agora pelo marido e colaborador de longa data, Nate Brenner.

A voz de Merrill é uma das marcas do som dos Tune-Yards (cuja grafia, até ao último álbum, fazia questão de se apresentar sob a forma de tUnE-yArDs). O timbre, que curiosamente se distancia da white woman’s voice que a cantora diz ter em “Colonizer”, traz em si uma textura magnética, que envolve o ouvinte e lhe propõe ideias, através de uma entrega apaixonada e até irónica. Fá-lo por meio de improváveis modulações, e arriscando-se. É característica suficiente para imprimir no álbum um cunho muito pessoal.

E que palavras canta ela? Temas que dizem muito a esta década: os privilégios e assimetrias que formam clivagens nas nossas relações uns com os outros, assim como a nossa consciência sobre eles, a forma como reflectimos a nossa posição, a nossa voz; e decidimos agir a partir daí. Para abordar o tema, Merrill cruza uma série de universos, tradições – empacota tudo nesta sonoridade de fácil audição, e espera que ressoe na cabeça de quem ouve, e produza algum resultado.

No mínimo, vemo-nos obrigados a classificar como divertido este jogo entre o sério e o dançável; entre as palavras politicamente carregadas que abordam temas do ethos pessoal e colectivo, e o som de animados ritmos disco, ora assumidamente retro ora mais contemporâneos – sem esquecer o espaço para o glitch, aqui e ali. Tudo a contribuir para uma criativa e luminosa mescla que se aproxima de um dissonante e alternativo afro-funk.

O baixo e os sintetizadores, nuns pontos mais cheesy que noutros, afirmam-se em faixas como “ABC 123”, um dos mais dançáveis exercícios, a par de “Colonizer”; ou em “Who Are You”, talvez a mais bonita do álbum. Essa riqueza instrumental, que vai beber muito a África – ora nas percussões, ora nas cordas muito pontuais, em momentos de coros, ou nos sopros – é o principal trunfo de I Can Feel You Creep Into My Private Life. É um disco de transposições culturais, diálogos e confrontações, e da procura de algo novo. Infelizmente, a maior parte das faixas não deixa mais que uma impressão ligeira no ouvinte, e um convite descartável para uma efémera e estranha dança.

Apesar de ser um álbum de várias camadas, equilibrado e bem construído, fica a sensação de que lhe falta mais substância. O álbum dos Dirty Projectors, lançado o ano passado, não se encontra distante desta sonoridade art pop – é, na verdade, uma proposta semelhante em termos sónicos. No entanto, resultou bem melhor, com uma produção mais límpida, ideias emocionalmente efectivas, e, no geral, composições mais cheias. É talvez a ausência de um sentimento de deslumbre que nos impede de fruir devidamente I Can Feel You Creep Into My Private Life. Mastigamos e dançamos o seu conteúdo – mas o sabor não dura, e esquecemos a pista no dia seguinte – falta arrepio e catarse. Fica a intenção.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.