Tolentino, o pescador de Homens

por Luís Osório,    5 Outubro, 2019
Tolentino, o pescador de Homens
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Hoje é o dia em que Tolentino, o rapaz pobre do Machico, filho de um pescador, está a ser elevado a Cardeal. Não consigo imaginar o que estará a pensar, o que lhe vai passando pela cabeça, um dia perguntar-lhe-ei.

Ele é parte da estratégia do Papa Francisco para mudar a Igreja Católica. Ao que se sabe. depois de o escutar no retiro que organizou para melhor o conhecer (é sempre no silêncio que mais profundamente se conhecem as pessoas), de com ele ter falado numa conversa a dois sobre livros e poetas, sobre Borges e Pessoa, sobre Deus também, sobre o que deve ser necessário para que Deus volte a iluminar a igreja, terá ficado rendido e sem qualquer dúvida de que Tolentino seria um dos seus principais “ministros”

Um dia, há muitos anos, li um poema que não sabia ser dele:

“Travessia da infância
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito”

Conheci-o depois, na mesa de um café no Largo da Estefânia, onde também estava sentada a poeta Adília Lopes. Jantámos juntos uns anos depois em casa do Bernardo e da Isabel, seus íntimos amigos. Ouvi-o falar da Madeira, da infância, do poderoso som que explode no silêncio quando estamos disponíveis para o escutar.

Depois, mais nada. Depois é o que o país conhece. D. Tolentino de Mendonça, o novo Cardeal que não é apenas mais um Cardeal. É o guardião dos segredos do Vaticano e bibliotecário do Papa. A pessoa certa no lugar certo. Quem melhor do que alguém como ele, poeta e arqueólogo das palavras, o que procura fundo a luz que possa iluminar o mundo ou apenas que nos possa iluminar no entendimento das palavras que saem de um poema.

O Papa Francisco, antes de falar com ele, perguntou-lhe assim: “Sr. Padre Tolentino, quando puder acha que me pode conceder uns minutos?”. Tolentino atrapalhou-se: “Santo Padre, eu é que tenho de lhe pedir”. Nesse exercício de humildade de Francisco estará certamente a chave para o que aí vem. Um antídoto para o deslumbramento que trazem os poderes. O Diabo para alguns. É sempre aí que o encontramos, na elevação, no momento em que subimos para os patamares onde parecemos protegidos do Mal e das suas sombras.
Mas não, agora é que as sombras serão perigosas, querido Tolentino, meu amigo. Escrevo-te assim com noção da importância do momento, será a última vez que te tratarei apenas pelo teu nome. Afinal, tu és filho de um pescador, parece mentira que a história se possa repetir. Boa sorte, no deserto. Eu confio, Vossa Eminência.

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