“The Two Popes”, de Fernando Meirelles, procura humanizar o Vaticano aos olhos do presente

por Lucas Brandão,    23 Dezembro, 2019
“The Two Popes”, de Fernando Meirelles, procura humanizar o Vaticano aos olhos do presente
“The Two Popes”, de Fernando Meirelles
PUB

Do Vaticano para o mundo. Fernando Meirelles é o portador desta mensagem cinematográfica, realizando “Two Popes”, um filme já bem quisto nas categorias dos Globos de Ouro e, certamente, que constará nas listas dos galardões dos Óscares. O enredo passa-se no ano de 2012 e é composto por um pedido do então cardeal argentino, de seu nome Jorge Bergoglio, endereçado ao Papa de então, Bento XVI, no qual se queria reunir com o Santo Padre em Roma, no desejo de renunciar ao seu cargo para se reformar. A solicitação é respondida pela figura pontificial e, com bilhete de avião comprado ainda antes, Bergoglio viaja a Roma e reúne-se com o Papa.

O filme viaja, assim, entre estas duas figuras. Uma, mais conservadora e ligada à tradição ocidental, com uma formação ortodoxa, outra com o rasgo latino, que a Argentina transporta no seu ADN, mas também de costumes mais simples e informais. Cada um com o seu lastro, com a sua formação, com o seu percurso ao serviço de Deus. São duas mundividências que entram em choque, que entram em rota de colisão, num caminho que já tinha sido provocado após a morte de João Paulo II no ano de 2005. Bento XVI, então Joseph Ratzinger, e Jorge Bergoglio foram dois dos cardeais considerados para a sucessão, sendo que Ratzinger acabaria por conseguir os 77 votos e por assumir o cargo deixado vacante pelo Papa polaco.

“The Two Popes”, de Fernando Meirelles

Nada que se possa falar deste filme pode ser considerado spoiler, apesar de grande parte das conversas serem, substancialmente, assumidas a partir das convicções de Bento e de Francisco. Isto porque corresponde à vida real, ao mediatismo que ambas as figuras tiveram no quotidiano, que se pode perceber nos noticiários de há uns anos atrás, e mesmo com uma pequena pesquisa na Internet sobre a vida e o percurso de ambos. No entanto, aquilo que este filme traz de novo é a sua expressão num caminho onde aqueles que, desencantados ou desinteressados, se afastaram da Igreja podem reencontrar as lides da Igreja Católica. Não obstante este desligar da sociedade em relação a essa realidade, a verdade é que ela permanece e persevera, sustentada no seu legado no seu enorme peso político, social, económico e cultural que as aulas de História não deixam esquecer. No centro, claro está, a figura de Deus, mais ou menos honrada no que se foi fazendo. Porém, esse é um debate que não deve ser feito aqui, mas sim suscitado naqueles que vêem o filme e que o interpretam com olhos de presente.

“The Two Popes”, de Fernando Meirelles

Não se pode escamotear deste filme a presença de dois ilustres atores a assumir os papéis de Bento e de Francisco. Do lado de Bento, um prestigiadíssimo e imponente Sir Anthony Hopkins, com uma representação firme e fria, fiel aos ares germânicos. Do lado de Francisco, é Jonathan Pryce, que consegue captar o espírito de humanidade, o espanhol e o calor humano do atual papa; em ambos, uma dualidade entre a distância e a proximidade que, gradualmente, se vai denotando. A relação que estabelecem revela, desde logo, também a química entre os dois atores, que conseguem, com o apoio de uma bela e limpa fotografia, e de um som tanto etéreo como mundano, captar e exprimir. Os diálogos que estabelecem mostram precisamente o choque de mentalidades e as diferenças que a presença de Deus pode assumir em cada um, por mais que a fé neste seja incalculável. Mais do que os cargos que assumem, o lento revelar da sua humanidade é a premissa que revela a subtileza e a preciosidade deste trabalho de Fernando Meirelles. Isto não podia acontecer sem o recurso ao espaço – desde a residência de descanso de Bento XVI até, em pelo Vaticano, à sala onde, em conclave, em caso de necessidade, é nomeado um novo pontífice (conhecida como Sala das Lágrimas).

“The Two Popes”, de Fernando Meirelles

Louve-se, desde já, o esforço meritório da recriação dos cenários da Capela Sistina, onde grande parte do filme se desenrola. Este processo foi orientado pelo historiador Enrico Bruschini e orquestrado pelo designer de produção Mark Tildesley. As próprias pinturas, em especial as de Miguel Ângelo, foram decalcadas através de uma técnica em que a pintura seria registada em filme e transferida para uma superfície, coberta por uma substância que sugasse a pintura para o gesso. Foram contratados alguns artistas locais para pintar alguns quadros correspondentes a um terço do tamanho, com a informática a entrar no fotografar, ampliar e imprimir para essa técnica de “tatuagem”. O diretor artístico, Stefano Maria Ortolani, mencionou que foi um processo que demorou oito semanas a ser completo.

De igual modo, a importância do tempo, em especial enquanto se percebe o percurso de Bergoglio. Mais do que outra coisa, a perceção de que não se trata de alguém perfeito, mas de alguém que errou e que nem sempre esteve do lado bom da história. Revelam-se, também, alguns aspetos da intimidade destes dois ilustres homens da Igreja, que entram em harmonia na partilha que vão estabelecendo. É uma revelação que mostra onde está, de facto, a presença de Deus. Na partilha entre dois seres humanos, daquilo que acreditam que é o melhor e mais puro de si, naquilo em que o encontram. Seja no mais mundano das coisas, seja no menos previsível dessas mesmas, sempre com algum humor à mistura (os próprios créditos são um exemplo bastante concreto daquilo a que o filme se propôs). O realizador brasileiro faz um esforço – que acaba por ser mais natural do que pré-estabelecido – de que o espectador perceba que os papas são, afinal de contas, seres humanos, que possuem fragilidades. São essas vulnerabilidades que levam a que Deus (ou a consciência ou qualquer ente transcendental considerado como um regulador moral) intervenha e afete as decisões tomadas.

“The Two Popes”, de Fernando Meirelles

“The Two Popes” é um filme de proximidade, de intimidade. Apesar de todo o lustre, de toda a pompa e de todos os formalismos que o Vaticano apresenta, apesar do vácuo deixado pelo vazio da humanidade em torno da Igreja, Fernando Meirelles quis humanizar a Igreja. Fazê-la mais próxima, mais calorosa, no sentido em que a sua moralidade nem sempre é a mais polida e harmoniosa, nem que os Papas e seus cardeais são figuras que estão num trono com uma vida sem prazeres mundanos e repletas de elitismos. A Igreja é feita de representantes que, eleitos ou não por Deus, são humanos, à imagem dos seus fiéis, à imagem dos seus detratores, à imagem daqueles que lhe são indiferentes. A interpretação subtil e irrepreensível de Hopkins e de Pryce ajudam a perceber essa abrangência daquilo que pode ser a fé, daquilo que pode ser o ser humano. Em oração, em reflexão, em meditação, descobrem-se mais linhas de intimidade e de proximidade que de indiferença e de descrença. “The Two Popes” tem esse condão. Com o poder da palavra e da experiência, a força de harmonizar e de humanizar.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados