“The Stillness Of The Wind”: uma vida inteira instalada no vazio da rotina

por João Diogo Nunes,    20 Fevereiro, 2019
“The Stillness Of The Wind”: uma vida inteira instalada no vazio da rotina
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Os fios imensos de tecido que hoje nos conectam com família e amigos estão emaranhados por cima de um abismo de memórias longínquas e de infância abandonada pelo tempo. The Stillness Of The Wind é a queda nessa rede frágil.

A obra do desenvolvedor independente Memory of God em conjunto com a Lambic Studios é um vórtice de sentimentos onde se cogita pelo estender de uma rotina que criamos. The Stillness Of The Wind oferece as mecânicas e deixa-as à disponibilidade do jogador para que este escolha as suas atividades e a ordem delas enquanto controla Talma, uma idosa que vive na sua quinta isolada no meio do deserto. A simplicidade das tarefas é tão limitada quanto a parcimónia da vida da velha e consegue funcionar como uma alegoria para a realidade do envelhecer rural e para o fluxo de memórias que se ativa naturalmente na caminhada para a morte.

O jogo é uma espécie de sequela de Where The Goats Are e, apesar de ter novas personagens e histórias, parece apenas um alargamento a nível de tecnologia e de conceitos, já que tudo o resto quase não muda. A escrita introduz-nos um mundo com toques sensíveis de fantasia, onde a Lua está colonizada e existem plantas bizarras ou itens fantasiosos. A linguagem poética das personagens nas cartas que escrevem é notável, infelizmente, estas são muito homogéneas no seu estilo. Há arcos secundários interessantes, mas certamente bruscos, e o desenvolvimento das personagens peca pela sua dispersão — o jogo, com cerca de quatro horas, não tem duração suficiente para desenvolver meia dúzia de personagens através de texto. Deste modo, as cartas parecem meros manequins contextuais que caem no saco sem fundo que é a sede narrativa causada pelo design de jogo. Há ainda interessantes e originais passagens de livros desbloqueáveis onde se descrevem cidades.

A jogabilidade assenta num modelo de gestão de recursos opcional esquematicamente simples, mas com uma complexidade capaz de criar várias formas de gerir o jogo: podemos ordenhar as cabras para fazer queijo, plantar sementes e regá-las para as ver crescer, apanhar ovos no galinheiro ou cogumelos no deserto, ler no sofá, desenhar no solo com um pau, explorar a área para encontrar memórias perdidas e por aí fora — de facto, a complexidade surge da dinamização entre as tarefas. Se formos mais extremos até podemos trocar todos os animais e livrar-nos de tudo para passar dias seguidos a vaguear no deserto ou permanecer num banco à espera do carteiro ou do fim do jogo. O sistema de troca de mercadoria sem moeda é ar puro pela ausência do habitual dinheiro, nele há espaço para feno, sementes, mais cabras ou galinhas, munições, alguns livros ou itens decorativos especiais. O valor de cada item é para ser descoberto pelo jogador, sendo algo críptico, mas importante, visto Talma ter energia limitada para as tarefas mais pesadas e o valor nutricional de cada alimento ser equivalente ao seu valor de mercado.

A experiência é imersiva e livre. Se temos obrigações no jogo e uma rotina para cumprir, somos nós próprios que a impingimos. No entanto, nem tudo é perfeito, a ausência da pausa com o menu é um problema pouco justificável: um possível chamamento emergente dos lavabos pode anular um dia no jogo e destruir todo um planeamento, para jogar este título é preciso mesmo estar isolado no espaço sideral e esperar que nenhum distúrbio ocorra ou então sair do jogo entre os pontos de controlo (ativam pela manhã). Outra questão semelhante é a da ausência da pausa do tempo ao ler as cartas, independentemente de fazer sentido no ritmo do jogo, não há motivo nenhum para não se parar o relógio incessante da aventura ao abrir os documentos que requerem leitura (já de si algo longa) e até releitura, afinal, há quem leia mais devagar e seja prejudicado. Ler é sempre aquele momento em que não deve haver pressão sobre o jogador, e é fácil vermo-nos a fazê-lo como se o mundo fosse acabar (porém, o problema não é tão acentuado como era em Where The Goats Are). Não esquecendo o sistema de disparo: é atroz; aliado à inteligência artificial de semelhante valor e à deteção da colisão deficiente, forma um trio que cria os momentos mais fracos do jogo, para além da fatídica e desenquadrada cena do sonho.

No que ao som concerne, o jogo cumpre com classe: a banda sonora, altamente atmosférica, encaixa na perfeição; as raras ocorrências da voz acrescentam personalidade; e a sonoplastia está no ponto, destacando-se os pássaros, as galinhas, o fogão e os sons da cidade esporadicamente introduzidos à distância, que dão uma ideia do desassossego cosmopolita que roubou a companhia a Talma. A direção de alguns sons estéreo está, no entanto, equivocada.A nível estético, The Stillness Of The Wind é de uma beleza ímpar. A paleta de cores quentes exala nostalgia, preenche as linhas de composição denteadas e simplistas e gera um aspeto árido, mas, ao mesmo tempo, vívido e machucado pela sensação de presença de uma vida em progresso. Durante a noite, tudo escurece radicalmente e o ambiente torna-se agreste e desconfortável para sugerir que está na hora de ir dormir ou ler na acolhedora casinha de Talma. As intempéries e as cinemáticas são outras notáveis exceções — fazem rodar as emoções com o seu contraste forte. Há também brio nas sombras e nos efeitos de partículas. É difícil, todavia, fechar os olhos às várias falhas: existem bugs que obrigam a sair do jogo e outros que fazem desaparecer itens do inventário, a física é irregular, a inteligência artificial é pobre e atrapalha, a deteção da colisão é má e prejudica a jogabilidade, a deslocação da personagem nem sempre é fluida, por vezes é penoso tentar interagir com as cabras perto de outras opções interativas e a ausência de controlo direto no analógico na versão para Nintendo Switch é desgastante (mesmo sendo, muito provavelmente, propositada).

Na música Sublime, Mark Kozelek canta: “They’re taking photos, I guess, ‘cause I’m getting old./They’re taking photos while they can”. The Stillness Of The Wind é pegar nessas fotografias, muitos anos depois, e jogá-las. É verdade que o departamento técnico é faltoso e que algumas decisões de design trabalham contra o jogo, mas no meio de um mercado saturado, nunca a frescura conceitual foi sentida tão naturalmente. Trata-se de uma viagem sem objetivos, sem urgência, sem vitória e sem derrota onde se põem de lado os elementos comuns que fazem de um jogo um jogo e utiliza-se o esqueleto desse meio para entregar uma fatia de vazio ao jogador e ensiná-lo a valorizá-la, até porque valorizar o vazio é enchê-lo de nós próprios e da abstração do afastamento — uma vista aérea da nossa breve jornada existencial.

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