“The Last of Us Part II”: ciclos de angústia

por João Diogo Nunes,    28 Junho, 2020
“The Last of Us Part II”: ciclos de angústia
“The Last of Us Part II”
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Depois do aclamado primeiro capítulo em 2013, a Naughty Dog está de regresso com o mundo pós-apocalíptico de The Last of Us. O fungo que dizimou a civilização continua ativo e o pior não é como os humanos cedem perante a infeção, mas sim perante eles próprios. Pronta para entregar mais lutas ferozes pela sobrevivência, esta segunda parte vem munida de perfecionismo técnico, muito polimento e coragem de subverter a sua estrutura narrativa para oferecer uma experiência única entre as grandes produções — estamos diante de uma obra cheia de alma, a mais madura e arriscada do estúdio.

“The Last of Us Part II”

The Last of Us Part II não tem medo de assumir o controlo, quando a maioria dos lançamentos de grande orçamento trata de empoderar o jogador, este retira-lhe o controlo para criar uma experiência real e impactante. É uma simulação de uma história, e esse uso do meio é magistral. Ser divertido ou não é irrelevante quando se pode ser tantas outras coisas, e, por muitos anos, foi mesmo isso que se procurou nesta indústria. Usar assim a dádiva da interatividade é o próximo passo.

Enquanto que o primeiro jogo apresentava uma história linear, The Last of Us Part II tem uma abordagem diferente, com uma estrutura narrativa fragmentada que faz vasto uso do flashback e do espelhamento. Ela vai-se encaixando eximiamente e os seus detalhes, ligamentos narrativos belíssimos, estão muito bem incluídos. Esta técnica arrojada gera uma experiência intencionalmente difícil de digerir, já que os caminhos morais e emocionais construídos para o jogador são-lhe retirados vilmente e reconstruídos do zero, logo oferecendo outros, em direção oposta, que não queremos percorrer, mas tem de ser, pois o jogo é assim mesmo e a vida também. O problema desta estratégia é que tende a assumir a posição moral do jogador e dá pouco espaço a posições alternativas, que são prováveis considerando o final da primeira aventura. Por muito que o jogador seja forçado a compreender que a mensagem é mais forte do que ele, há sempre uma certa negligência para com a diversidade de posições de quem joga, e quem esteve atento aos detalhes do capítulo original poderá ter uma balança de julgamento muito distinta, capaz de depauperar facilmente alguns dos novos dilemas.

“The Last of Us Part II”

O desenvolvimento das personagens está muito bem conseguido, porém, vários eventos narrativos, sobretudo os fulcrais, têm empurrões forçados para aninhar a trama, eles acontecem demasiadas vezes para não se notar e deixam uma sensação de artificialismo. Se certos aspetos fossem removidos, como o culto religioso clichê e desinteressante, e a aventura se concentrasse mais nas implicações da sobrevivência, nos infetados e nos elementos centrais da história para criar uma jornada menos bélica (não menos violenta) e com um número menor de confrontos, teria um ritmo superior e um foco mais definido, até porque a guerra de fações está bastante gasta e acrescenta pouco, servindo quase só para justificar a jogabilidade. A duração da narrativa também se estende demasiado, havendo níveis inteiros que podiam ser facilmente cortados, mesmo que se note que a viagem seja propositadamente longa para acumular catarse. O mesmo se pode dizer das excessivas notas escritas espalhadas por todo o lado, elas expandem o universo de jogo, mas a maioria é palha narrativa. Seria valioso que o minimalismo dos menus e da música se apoderasse da história também.

Graficamente, o jogo é extraordinário. Com os cenários pós-apocalípticos de luxo, ver a luta entre o betão e a natureza verdejante nunca deixa de impressionar. O nível de detalhe é sem precedentes; as animações são topo de gama e vão aos extremos para mostrar realismo (por exemplo, se empurrarmos algo pesado, a personagem vai rodar a mão passado algum tempo); as cinemáticas têm imenso brio; as cores, a iluminação, os reflexos, as sombras, o fumo e até a milenarmente complicada vegetação, tudo está divinamente produzido. É perfeito? Não, mas as falhas, como pop-ups esporádicos, culling defeituoso (é o defeito mais pesado), sombras de baixa resolução (nos níveis finais, que estão menos bem) e outras são raras e representam pouco nas mais de 30 horas de jogo. Em cima da excelência gráfica, note-se a física fenomenal.

A jogabilidade é muito refinada e prima pelo realismo no contexto da sobrevivência. Apesar dessa qualidade, é aqui que existem mais problemas. A fórmula tem muita química com os outros departamentos do jogo, porém, é velha, sofre de um design que tem dificuldades em equilibrar a exploração com o combate. O jogo encurrala o jogador várias vezes, dado que há um conflito entre o competente design de níveis e as dinâmicas de jogo — parece que as mecânicas não se encaixam nos níveis naturalmente. Para lá disso, a temporização indireta de certos confrontos é prejudicial, especialmente com a introdução dos cães de patrulha, que nos farejam e obrigam ao movimento, empurram-nos para a deteção, o que não combina com os elementos de gestão de recursos e planeamento de rotas em que tanto tempo se investe.

O ritmo é quebrado constantemente pela procura de colecionáveis e recursos após eliminar todas as ameaças numa zona — podemos não o fazer, mas perdemos o acesso a esses bens. A exploração sistemática pode cansar, levando-nos a andar em círculos para ter a certeza de que não ficou nada atrás. Isto é agravado pelos controlos e HUD que são algumas vezes inconsistentes no ato de apanhar e detetar itens. O jogo também falha em harmonizar os elementos da dificuldade, havendo, por exemplo, na dificuldade moderada, um número facilitador de recursos e um tempo de detenção implacável, contudo, isto é anulado rapidamente pela possível personalização individual destes elementos.

“The Last of Us Part II”

A inteligência artificial é competente, com flanqueamentos inimigos perigosos, rotas de patrulha imprevisíveis e parceiros mais cuidadosos (apesar de bloquearem passagens estreitas lá de vez em quando), o que no primeiro jogo constituía um grande problema. As secções com infetados são superiores às secções com milícias, que nos fazem sentir como um rei em cheque numa partida de xadrez. Há um design aberto, mas, ao mesmo tempo, uma circulação condicionada que retira eficácia a ferramentas como as minas ou os coquetéis molotov, que são mais fracos nesta sequela, já que os inimigos não se agrupam tanto.

Várias sequências são impingidas com o mero intuito de variar a ação, mas não resistem ao alongado comprimento de jogo e a frescura dura pouco. Falta originalidade, pelo que valia a pena arriscar tanto neste departamento como na narrativa se arriscou. O combate é repetitivo, não porque não varia, mas porque há confrontos a mais e soluções a menos. A furtividade tem um papel importante e é boa na teoria, com mecânicas ajustadíssimas, só que na hora da execução há sempre um impedimento qualquer. Por um lado, é intencional e serve para integrar o jogador na experiência pretendida, apontando para o desconforto contextual, por outro lado, dá azo a situações contraditórias, onde o planeamento e a paciência podem ser penalizados por um inimigo que nem sabíamos que existia e nos avista a uma distância improvável e os erros podem não o ser porque um inimigo ficou cego quando escolhemos impulsivamente a rota mais populosa. Já a forma como o jogo prende todos os seus elementos à diegese é admirável e ade um alto grau de realismo. Também os simples quebra-cabeças estão bem integrados no cenário e oferecem bons momentos.

“The Last of Us Part II”

Tal como o grafismo, o som é fora de série. As prestações vocais são de alta qualidade, com, para além dos protagonistas, destaque para Jeffrey Pierce (Tommy). A música continua forte, só que desta vez temos menos as típicas faixas de cordas e mais a música ambiental angustiante. Melhor que tudo são os efeitos sonoros, com um realismo incrível e um design de áudio que sozinho impressiona.

A cinematografia é ótima, com enquadramentos estonteantes e várias transições sem cortes que passam o jogo das cinemáticas para a mão do jogador. A sábia utilização dos pontos de fuga continua a ser marca do estúdio, ainda que neste jogo haja menos linhas paralelas e iluminação seletiva do que o costume. Resta também dizer que o título da Sony é o campeão da acessibilidade, as definições são tantas que até alguém em estado de coma deve conseguir jogar. O estúdio sempre apostou neste aspeto e é ótimo ver que está ainda mais inclusivo.

“The Last of Us Part II”

The Last of Us Part II é um jogo de grandes dimensões, seja no que for. Tem pretensões sérias e não olha a riscos. O grafismo lustroso e o som impecável dão corpo ao realismo cru onde atuam as personagens assustadoramente humanas. Até a jogabilidade polida e instrumental, mas que soluça frequentemente, é um escravo da narrativa, que é onde desemboca toda esta empreitada. A escrita procura subverter padrões, ela cavalga na interatividade, um componente indispensável para se entender como esta história comunica. A narrativa, que só no final chega a ser subtil, não é ideal, pois arca com as consequências da ousadia. A mensagem passa da maneira emocionalmente mais dura possível, evocando a miséria causada pela fragilidade da cognição perante as emoções mais intensas que podemos sentir, sejam elas o amor, a raiva, a vingança ou outras quaisquer.

É uma obra que transforma a sua violência em antiviolência aproveitando-se do papel do jogador, obrigando-o a participar no desenvolvimento narrativo e a experimentar em primeira mão as consequências emocionais dos atos das personagens. Quem não se deixar levar por este uso alternativo da interatividade e criar expetativas em direções arbitrárias terá problemas em desfrutar do jogo. Não é um jogo sobre o jogador — há que deixar o ego em casa para experienciá-lo.

The Last of Us Part II nunca o esconde: é sobre humanização. Se incluirmos o papel do jogador na história, vemos uma abordagem de certa forma semelhante à da filmografia de Masaki Kobayashi e apimentada com O Conde de Monte Cristo. É sobre contrariar o poder que a violência tem, dentro e fora de alguém. É também sobre quebrar ciclos, sendo a vingança o mais proeminente, mas não o único. Justiça, fundamentação, conflito de ideais e perda são todos mastros no navio que é a mensagem de autossuperação e união que o jogo transmite e cujo foco recai sobre as imperfeições das suas personagens, aqui levadas ao limite e expostas num palco de miséria e brutalidade, no qual se torna impossível não ver a nossa inescapável falência.

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