“The House That Jack Built”, de Lars von Trier: é chocante mas não é mau filme

por João Diogo Nunes,    27 Novembro, 2018
“The House That Jack Built”, de Lars von Trier: é chocante mas não é mau filme
“The House That Jack Built”, de Lars Von Trier
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Malevolente e desalmado — é assim The House That Jack Built. Desalmado não por não ter alma como filme, pois certamente a tem, mas por querer ser assim. Consegue-o no mais macabro dos espetáculos. De traço psicológico carregado e chocante, é um filme que aumenta a gravidade na sala; ao mesmo tempo contém humor e põe a plateia a rir, numa façanha que ocorre com mérito. O ambiente é único: uma mescla de arte renascentista, metáforas autobiográficas (que nunca se decidem se são a mensagem central ou um mero piscar de olho), humor negro seco e sério, suspense inconvenientemente ritmado, música alegre, referências subtis e uma ubíqua brutalidade desconcertante que não é gratuita, muito menos barata, tudo isto ofertado como se não fosse o filme que é.

“The justification of art is the internal combustion it ignites in the hearts of men and not its shallow, externalized, public manifestations. The purpose of art is not the release of a momentary ejection of adrenaline but is, rather, the gradual, lifelong construction of a state of wonder and serenity.”, citação atribuída ao pianista prodígio Glenn Gould, personagem involuntária, que é, no fundo, a mais fascinante do filme.

Os planos próximos e o jogar constante com a distância focal são deliciosamente inortodoxos e constroem a cena e o protagonista majestosamente, ainda que o destaque vá para a utilização dos jump cuts, técnica destacada de aceleração temporal, nas cenas naturalmente longas e de desenrolar lento, contraste que gera uma atmosfera singular e prende o espetador na realidade perturbadora que vai sendo introduzida em instâncias metronomizadas e cumulativas.

“The House That Jack Built”, de Lars Von Trier

O acumular de incidentes vai-se acompanhando da construção da casa que Jack tenta edificar, empilhando-se uns atrás dos outros como a cantiga de roda tradicional britânica This Is the House That Jack Built. A permear esta iteração está o conteúdo expositivo do filme, o sumo, que se compõe, penosamente, de mensagens convolutas — as ligações entre cenas encruzilham-se com as temáticas díspares e negam um fluxo coerente capaz de atingir a audiência. Ocorre, pois, o problema do filme em comunicar diretamente: quanto mais direto é, mais se perde na informação; é através da metáfora e do símbolo que a obra opera com maior facilidade e, todavia, não é aí que se centra, desfocando a narrativa da mesma forma que o faz com a câmara na filmagem, embora com efeitos e méritos opostos.

Comparativamente aos filmes anteriores de Lars von Trier, The House That Jack Built quase não passa de um aglomerado de ideias de duche trabalhadas inseguramente, ainda que com indubitável mestria técnica. Deve-se notar o epílogo, decerto o segmento mais bem conseguido do filme, em que a solta evolução da personagem se cola ao fio condutor e juntos atam o conjunto narrativo idealmente. Na cena final quase parece que vamos ser transportados para a célebre cena de nove minutos de Nostalghia de A. Tarkovsky, e, apesar de não sermos, ficamos com a sensação de que se assim fosse, havia força na cena para o justificar.

“The House That Jack Built”, de Lars Von Trier

Sem descurar os elementos obrigatórios que se desapegam da neutralidade cumpridora, atente-se à sonoplastia competente; às prestações exemplares de Matt Dillon e de Riley Keogh; e à escolha da música nos créditos, um espelho desavergonhado do gáudio da plateia. Já a qualidade da iluminação oscila um pouco e os cenários nem sempre se aliam ao guião perfeitamente (talvez pela já conhecida teimosia decorativa do realizador). Também a cinematografia, a caracterização e os efeitos especiais têm qualidade, mas nunca chegam a impressionar, excluindo alguns casos muito pontuais. É verdade que o filme facilita demais em temas claros e perde tempo para construir os grandes, é verdade que a procura pelo desconcertante, possivelmente uma hipérbole autobiográfica da reputação de von Trier, interrompe comichosamente o fluir narrativo que carrega o discurso sobre a introspeção artística do autor, algo muito mais valioso nesta Divina Comédia dinamarquesa sem paraíso.

Numa análise mais externa, sempre imprópria de se fazer, há que entender quem realizou este filme. Lars von Trier é o afamado realizador controverso e acusado de misoginia; foi até banido de Cannes por vários anos depois de referências impróprias ao nazismo e a Hitler (que está presente no filme, atice-se), ainda que em pressuposto jeito de brincadeira. Neste aspeto, não é de todo descabido interpretar o filme como uma metáfora feita, no mínimo, para Cannes, tendo o filme quebrado a ausência do realizador durante sete anos do festival. É quase um «voltei e fiz um filme para vos responder», infelizmente, se é o caso, é uma arte perdida que Trier vem expor. Será o início do filme a derradeira metáfora para a controvérsia na vida real do realizador, controvérsia que alimenta numa canção de roda cumulativa? Foi Trier provocado e respondeu? Se sim, esta é uma obra confessional que se ri da impotência social enquanto Lars se automutila e se esconde por detrás da arte, que tudo perdoa. “Um homem, por nascer homem, já nasce culpado” — acusações de misoginia são apenas uma perspetiva, afinal, para Jack, ou Lars, as mulheres são “apenas mais cooperantes”.

“The House That Jack Built”, de Lars Von Trier

The House That Jack Built não é, definitivamente, um mau filme, os padrões técnicos e a charmosa apresentação são um mimo ao esplendor estético e há a escrita competente e significativa, com nuances subjacentes detalhadas e decorativas que enchem de propósito cada linha de diálogo seca e vinculativa. Porém, é a simplicidade abrupta da comunicação que se entrelaça confusamente com a profundidade da exposição e deixa insegurança e falta de foco na expressão das ideias, que por mais interessantes que sejam, não encontram um culminar — a dispersão fala mais alto; apenas o metaforismo autobiográfico, que não se pode dizer que se confirme totalmente a nível interpretativo, é levado a cabo de modo imaculado. Fosse o contrário, estar-se-ia na presença de uma obra muito mais rica, assim, obriga-se a despejar o conteúdo relevante e a aceitar as indulgências de Lars, mais diretas, mais pobres.

Numa advertência final, mencione-se que The House That Jack Built é um filme chocante — não foi à toa que várias pessoas abandonaram a sala. Os mais sensíveis poderão preferir ficar de fora desta experiência.

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