Terapia de Divã. Será que aplicamos bem o termo “demência” na terceira idade?

por Ana Monteiro Fernandes,    26 Julho, 2020
Terapia de Divã. Será que aplicamos bem o termo “demência” na terceira idade?
Ilustração de Simone Roberto/CCA
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(‘Terapia de Divã’ é a rubrica da Comunidade Cultura e Arte dedicada à psicologia. Semanalmente, temos todos um encontro marcado neste divã para, com o auxílio dos especialistas, discutirmos e entendermos melhor os mais variados assuntos — desde a sociedade até à criatividade — à luz do enquadramento psicológico. Para cada assunto visado, haverá, primeiro, um texto opinativo de preparação, como o que se segue, com vista a contextualizar e preparar o tema que será abordado, posteriormente, com o respectivo especialista, em entrevista.  Assim, damos-te, também, tempo para contribuíres com uma questão, que poderá ser seleccionada por nós, caso a queiras ver respondida por quem sabe. O tema em análise é “a saúde mental na terceira idade”. Terão os nossos idosos o auxílio necessário? O que é a demência? Será que aplicamos bem o termo? Quais os principais desafios na terceira idade?” Não percas a entrevista do próximo terapia de divã). 

Viver num mundo hedonista de jovens é mais apetecível porque as oportunidades estão todas em aberto e tal não nos faz pensar na noite da vida. Por consequência, dizer-se que este país não é para velhos, é mais do que fazer uma referência a um título de um filme. É constatarmos a realidade, que, desde a saúde até ao bem-estar e condições básicas para se manter a dignidade, ainda falta muito terreno para palmilhar. 

O grande e principal problema começa quando a dependência se instala e os familiares, ainda numa idade activa e com responsabilidades acrescidas – tal como manter o pão na mesa -, se vêem completamente abandonados, sem saber como contornar a questão e oferecer conforto e qualidade de vida aos seus ascendentes. Se duvidam, vamos pensar na seguinte questão. Imaginem um idoso que, de repente, tem um problema de saúde incapacitante. Dependendo do problema, esse idoso poderá ir, após a estadia no hospital, para uma determinada unidade (caso tenha sorte com as vagas) já com um limite de tempo estabelecido, geralmente de 31 dias. Após o término desse prazo, se a família, de facto, não tiver condições ou possibilidades para tomar conta do seu familiar sénior de forma apropriada e com as especificidades necessárias, pode fazer a própria um pedido na Segurança Social para uma vaga num lar. Pedido esse, que se for feito dessa forma independente, pode demorar até um ano ou mais para ser atendido. Como fica o idoso durante esse tempo? 

Sim, há os assistentes sociais dos hospitais ou das respectivas unidades, que podem fazer o pedido dessa mesma vaga com carácter urgente. Mas conseguir que tal aconteça é uma epopeia tremenda, mesmo que haja direito a tal, pela falta de vagas e falta de oferta pública. Isto quando as instâncias sociais que deveriam ajudar não o fazem, e são elas próprias a omitir informação acerca dos devidos direitos, porque esta questão resume-se, literalmente, desta forma: “são 100 cães a um osso”. Há ainda outra questão –  caso essa vaga seja conseguida, o mais provável é que enviem o idoso ou a idosa para um sítio muito distante do seu local de nascença ou residência, mesmo que se possa ter uma área de preferência. Escusado será dizer que tal situação impossibilita a família de seguir o seu ente querido de forma cuidada, mais assídua e regular, e aumenta o poder das instâncias (caso estas funcionem mal, atenção, já que não se pode tomar a parte pelo todo) de encobrirem os seus problemas ou aspectos mais negativos. Agora imaginem esta situação, em plena pandemia, em que as visitas aos lares foram proibidas. 

Comecei por referir este exemplo porque, de facto, são várias as famílias portuguesas que passam por este problema e é, também, esta situação, pela falta de uma oferta especializada pública, que faz proliferar o negócio dos lares ilegais, com uma forma de funcionamento totalmente hedionda, ou aumentar o monopólio de lares que praticam preços absurdos sem, no entanto, tal nem sempre se repercutir no bom trato humano do idoso. Mas esta não é a situação pior, porque estamos a partir do princípio de que há uma família, como base, que realmente se interessa. Não podemos esquecer os que são abandonados à sua sorte, ou os que vivem literalmente sozinhos, sem já terem a capacidade de tomarem conta de si. Tudo se trata de um jogo de interesses, todos fazem valer a sua parte, todos, menos os visados e os que sofrem as consequências – os nossos velhos. Fazem falta equipamentos intermediários que auxiliem as famílias a tomarem conta dos pais e avós quando estes se encontram, de facto, dependentes. Equipamentos que ajam com verdadeiro sentido de auxílio, comunidade (acima de tudo) e dignidade. 

Esta é uma parte séria da questão, mas vamos pensar na outra parte. O que fazer quando, a par destes problemas dos nossos velhos, a demência chega ao mesmo tempo? Confesso que sempre tive muita curiosidade por este termo aplicado às doenças do foro mental na terceira idade, porque, geralmente, quando a pessoa visada não sofre de Parkinson ou Alzheimer, é quase sempre este o termo utilizado, mesmo pelos profissionais de saúde em geral. Não tive, ainda, uma oportunidade de confrontar um especialista em psicologia geriátrica para tirar esta dúvida, portanto ainda não tenho respostas para ela e ela prevalece enquanto escrevo este texto: quando utilizamos o termo “demência”, será que o estamos a fazer de forma correcta? Mesmo em pleno século XXI e com todo avanço das neurociências, mesmo sabendo que há toda uma conotação negativa e um preconceito aplicado ao termo? E mesmo se sim, se for o correcto, a grande abrangência e a grande facilidade com que aplicamos o termo à decadência neuronal nos seniores, não fará com que estejamos a meter vários outros factores ou patologias no mesmo saco? O que será, afinal a demência? Será que, apesar de estarmos num país ultra envelhecido, temos informação suficiente para sabermos identificar os seus sinais e sabermos lidar com eles? Mas se esse termo, pelo contrário, for mal aplicado, por que o utilizamos tantas vezes, muitas das quais para nos referirmos a sintomas ou aspectos que podem ser diferentes?

O que, de facto, sabemos – embora haja imensos estudos que comprovam que o nosso cérebro tem uma plasticidade muito maior do que aquela que pensávamos e mantém a sua capacidade de aprender até muito tarde, caso seja estimulado regularmente – é que, à medida que nós envelhecemos, temos a propensão natural para termos uma consciência enorme de experiências passadas e uma boa memória de acontecimentos que já se passaram há muito. Normalmente, sem nenhuma outra patologia associada, como é óbvio, as práticas várias vezes repetidas ao longo da vida não se esquecem com facilidade – a memória, nesse sentido, perdura. Pelo contrário, não conseguimos assimilar a memória de novas experiências ou recordarmo-nos da pessoa que vimos na hora atrás. Isto inverte a lógica natural de quando se é jovem, mas tem uma explicação relacionada com as ligações sinápticas. Repetir algo várias vezes, por um longo período de tempo, reforça essas ligações e torna-as mais fortes. Permite-nos não esquecermos as coisas. Quando se entra na terceira idade, já não é fácil construir uma ligação sináptica de raiz que tenha força para se fortalecer e perdurar. Daí ser característico o idoso que lança verdadeiros sermões sobre o que se passou já nos anos de 1950, com a mesma propriedade como se o acontecimento tivesse ocorrido ontem. Mas, pelo contrário, se for preciso, já não se lembra do que disse nos minutos antes ou baralha por completo o nosso nome. 

A última questão verdadeiramente importante e que, também, precisa de ser mediada, é quando há a perda de independência e a frustração chega. Custa, para o idoso, após uma longa vida em que foi, e muito bem, dono de si mesmo, ver-se ao cuidado de terceiros ou dos seus próprios filhos que, de repente, começam a tomar conta de todos os aspectos referentes à sua vida – as mesmas pessoas que orientou e que ajudou a crescer. Grande parte do característico mau feitio pode advir daí. Os filhos (mesmo com boas intenções), geralmente, não percebem esse facto porque, emocionalmente, estão muito ligados à questão e podem interpretar estas atitudes como ataques directos, quando não é bem o caso. O que acontece muitas vezes, e o que também pode gerar atrito, é quando o idoso ainda tem aquele instinto de autoridade de pai e o filho, quase instantaneamente, se vê como um adolescente típico com uma ‘revoltazinha’ a nascer dentro de si, porque o progenitor não cede à vontade daquilo que seria esperado fazer. Ninguém tem culpas no cartório, não é uma questão de se ser bom ou mau, é apenas uma extenuação latente pelos filhos, muitas vezes, sentirem que estão a trilhar um caminho sozinhos.

A próxima entrevista do ‘Terapia de Divã’ abordará todas estas questões. Se quiseres contribuir com uma dúvida tua, até mesmo num outro aspecto que não esteja aqui mencionado, podes fazê-lo. Estamos a aprender, também, à medida que a rubrica avança. Se o tema te interessa, não percas a próxima entrevista. 

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