Terapia de Divã. Os internamentos hospitalares na adolescência e infância com Sofia Nunes Silva

por Ana Monteiro Fernandes,    18 Junho, 2020
Terapia de Divã. Os internamentos hospitalares na adolescência e infância com Sofia Nunes Silva
Ilustração de Simone Roberto/CCA
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(‘Terapia de Divã’ é a rubrica da Comunidade Cultura e Arte dedicada à psicologia. Semanalmente, temos todos um encontro marcado neste divã para, com o auxílio dos especialistas, discutirmos e entendermos melhor os mais variados assuntos — desde a sociedade até à criatividade — à luz do enquadramento psicológico. O tema em análise é “os efeitos psicológicos dos internamentos hospitalares prolongados”. Quais são esses efeitos? Como é que se pode lidar com os casos mais difíceis? Se quiseres saber, lê a entrevista que se segue e aguarda pela entrevista da próxima semana. Para este tema em particular, como tem várias cambiantes, iremos abordar, de momento, com a psicóloga Sofia Nunes da Silva, o caso concreto dos internamentos hospitalares prolongados em crianças e adolescentes. Para a semana, iremos abordar os casos dos internamentos nos adultos e na 3ª idade, com o psicólogo Manuel Matos).

Sofia Nunes da Silva é psicóloga clínica e exerce na Serviço de Psiquiatria e saúde mental da Infância e Adolescência do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria e no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa.
Desenvolve o seu trabalho clínico na vertente de Consulta Externa e de Apoio ao Internamento com crianças, adolescentes e respectivas famílias.

Como é que na infância e na adolescência se lida com uma hospitalização alargada, principalmente quando são fases de transformação a nível psicológico e físico? Como é que se lida com a adaptação à mudança natural do corpo e com a adaptação ao corpo transformado pela doença? Será que os efeitos psicológicos derivados de uma hospitalização podem perdurar após a alta? Quais os sinais de alerta? Se quiseres saber, lê a entrevista. A ideia principal a reter é que qualquer pessoa que passe por uma hospitalização prolongada pode sofrer as consequências psicológicas desse mesmo internamento sem ter “uma qualquer suscetibilidade ou fragilidade emocional”; embora, claro, acontecimentos prévios e a própria predisposição da pessoa para encarar o internamento também tenham uma grande influência. No caso das crianças e adolescentes, é importante, se possível, continuarem a ser acompanhados pelos mesmos técnicos de saúde para que, com a constância da relação, se desenvolva uma maior confiança entre o paciente e o técnico profissional de saúde. Lê a entrevista e acompanha a da próxima semana.

A psicóloga clínica Sofia Nunes Silva. Fotografia de Lara Benevides

Os internamentos hospitalares prolongados podem ter efeitos psicológicos, neste caso em específico, em crianças e adolescentes já com alguma susceptibilidade emocional ou psicológica, ou podem manifestar-se em crianças e adolescentes sem problemas a esse nível?

Qualquer internamento, prolongado ou não, pode trazer consequências ou alterações a nível comportamental e psicológico em crianças e adolescentes de uma forma geral, sem ser necessário que exista, previamente, qualquer suscetibilidade ou fragilidade emocional. Num internamento, há todo o impacto de uma ambiente estranho, diferente e, por vezes, assustador – quer pelos aparelhos médicos que são novidade, quer pelo contacto com os técnicos que não se conhecem e que vão ser os principais cuidadores durante esta estadia. O medo da dor e a exigência dos procedimentos médicos também contribuem para uma sensação de insegurança e receio. Crianças, adolescentes e famílias vão ser postos à prova durante este período. As reações aos internamentos vão depender de um conjunto de fatores: motivo e duração do internamento, tipo de procedimentos que têm de enfrentar, presença ou ausência dos pais ou cuidadores diretos, a própria personalidade e a capacidade de adaptação das crianças e adolescentes.

Manifestação de maior dependência face aos pais, zanga, tristeza, birras, agressividade, fechamento sobre si próprio, alterações do apetite e do sono são reações a que podemos assistir neste contexto. Mas importa referir que são reações normativas e adaptativas ao esforço exigente que têm de fazer. Efetivamente, quanto mais avançarmos na idade da criança, mais fácil será toda a compreensão do que se passa à sua volta e do que esperam dela. Também para os pais este é um período muito difícil. Os pais representam quem está ali ao lado mas a quem, neste momento, é retirado o poder de “resolver” as queixas dos filhos. É algo que provoca sentimentos de grande ambivalência e impotência. Muitas vezes, até é após a alta que acabam por ter o espaço necessário para manifestar todo o turbilhão que viveram e pedem-nos, muitas vezes, apoio nessa altura. Sentem-se mais frágeis e não conseguem entender porquê. Precisam, ainda, de ser escutados e cuidados para que possam prosseguir e voltar a assumir o seu papel de cuidadores e educadores de forma integral.

No momento de um internamento, quais são as principais diferenças na forma como crianças e adolescentes o encaram? É mais fácil comunicar com o adolescente e fazê-lo entender a especificidade da situação, por exemplo?

A maior compreensão do que se passa à sua volta e do que é pedido pode facilitar ou diminuir o impacto deste período para os adolescentes. No entanto, a adolescência não é garantia única para que tudo corra melhor. Dependendo do seu estado emocional prévio e da sua capacidade de reposta, os adolescentes terminam, geralmente, os internamentos com boas relações e recordações dos técnicos e cuidadores hospitalares. O importante é que, tanto crianças, quanto adolescentes, sejam chamados a assumir um papel nos seus tratamentos ou procedimentos. Isto tem o objetivo de lhes devolver algum controlo sobre o que se passa e de valorizar o seu comportamento e reações como contributos fundamentais para o sucesso na melhoria do seu estado clínico.

No momento de uma hospitalização, a pessoa tem uma maior sensibilidade a nível sensorial, sente dor física, tem o corpo mais sensível e suscetível a estímulos sensoriais. Se esse aspecto não for tido em conta, essa maior sensibilidade pode reflectir-se no comportamento? Por exemplo, pode traduzir-se numa maior irritabilidade ou em acções mais exacerbadas?

A questão da dor é uma questão que, muitas vezes, pode estar ligada ao estado emocional da criança ou do adolescente. Vamos pensar que uma criança que se sinta, neste ambiente hospitalar, menos acompanhada e menos segura. Ela vai reagir sempre, em princípio, de uma forma mais exacerbada e com maior descontrolo. Uma criança que tenha, fora do ambiente hospitalar, uma vida ou um acontecimento de vida mais marcante, estará sempre mais suscetível. Imagine, aconteceu há pouco tempo: alguém entrou no hospital para tratamentos ou para outra coisa qualquer e, de repente, teve reacções, como estava a dizer, mais exacerbadas. Muitas vezes, o que acontece é que descobrimos que essas crianças estão a passar ou passaram por alguma situação mais complicada – neste caso, era mais do que uma situação ao mesmo tempo. Essa mesma criança acabou por nos explicar que era vítima de bullying – era pré-adolescente – e o seu pai tinha morrido há três ou quatro meses. Eram informações que não tínhamos até ao momento. Essas dores emocionais que tinha transformaram-se em insegurança e geraram nela um descontrolo muito maior.

O que neste ambiente hospitalar se procura fazer? Procura-se que ela crie uma relação com alguém que passe a viver com ela este caminho enquanto está no hospital, com quem possa falar ou com quem possa ir exprimindo as suas emoções que, de certa forma, ela teve de guardar, reprimindo-as para poder dedicar-se, infelizmente, às exigências do internamento. Por outro lado, também, e felizmente, tem-se vindo a trabalhar há algumas décadas para a melhoria das condições para que tal possa acontecer. Nestes casos, é importante terem menos cuidadores, menos pessoas diferentes a tomar conta delas. A constância do acompanhamento pelos mesmos técnicos vai dar uma maior confiança à criança, e é necessário dar-lhe um controlo maior sobre o que está a viver.

Esse trabalho, que se incide na minha área em específico com estas crianças, tem de se debruçar nas questões do auto controlo para que a criança desenvolva e aumente o conhecimento de si própria e daquilo que são as suas capacidades – nomeadamente no que diz respeito à gestão do stress, da forma como consegue relaxar, o papel que ele próprio tem enquanto interveniente, que é determinante para que o momento corra melhor. Isto é, portanto, dar poder à criança e ao adolescente. Ele tem aqui um papel tão importante quanto os profissionais que o acompanham, porque vai depender, de facto, da sua atitude, da sua prestação, do seu controlo, da forma como aquele procedimento vai correr melhor ou pior. Isto, obviamente, como imagina, a partir de uma certa idade, é muito mais fácil de explicar.

Focou que, para uma criança ou um adolescente, o acompanhamento pelos mesmos profissionais é muito importante. Nestas questões, tem de haver uma relação de confiança, confiança essa que só é possível se houver uma continuidade da relação. No nosso SNS, penso que tal nem sempre será possível.

Nem sempre é fácil, mas é possível! Aquilo que lhe posso dizer é que trabalho há 20 anos e, ao longo destes anos todos, sinto uma facilidade muito maior para essas questões, apesar de algumas políticas de redução de pessoal. Nem sempre acontece, é verdade, mas muitas vezes acontece e nós temos é que nos focar nas coisas positivas. Temos de ter em atenção aquilo que não corre bem também, é verdade, mas reconheço que tem sido feita uma evolução muito positiva, sem dúvida.

Importa referir o amor e dedicação que os profissionais de saúde colocam naquilo que fazem. Aquilo que fazemos no nosso dia-a-dia ultrapassa em muito os conhecimentos técnicos para os quais fomos formados. O hospital é o prolongamento, muitas vezes, da nossa casa pelo tipo de relações que aqui se estabelecem com os doentes ou até mesmo no apoio que sentimos ter que dar a um colega que passou por uma situação profissional exigente. E também levamos, muitas vezes, para casa aquilo que vivemos de muito intenso em determinados dias. Mas o mais engraçado é que, se perguntar, sentimos que ganhamos muito mais do que perdemos. Somos muito privilegiados por podermos fazer parte de momentos tão duros das famílias e de aprendermos com a sua competência.

Um adolescente tem de passar por certas vivências com os seus pares. É uma altura de experimentação e de descoberta. É importante para ele. No caso de um adolescente que está muito tempo hospitalizado, como é que se consegue lidar com esta questão?

Isso acontece, sem dúvida. É uma temática muito importante. Há essa consciência da adolescência como um período de grande vulnerabilidade, se pensarmos nesse aspecto das experiências, da grande ligação aos amigos. A uma criança basta que os pais estejam ao pé, o adolescente, se calhar, tem a namorada ou namorado, o melhor amigo, a melhor amiga. Nós temos consciência desse aspecto e os namorados ou amigos podem, desde que seja acordado, vir fazer a visita. Por outro lado, hoje em dia, há as redes sociais e os adolescentes têm uma liberdade muito grande para a utilização das redes aqui, no hospital, e estão em constante troca. Têm o telemóvel ao lado, estão sempre a falar com alguém porque, na adolescência, a manutenção destas relações e destes contactos externos à família são fundamentais. Isso é conversado com o adolescente. Outras vezes, vêm mesmo grupos da turma, os grupo de amigos e pede-se aos pais que façam uma ponte, também, com outras actividades muito importantes. Podem-se fazer, por exemplo, quadros giros com fotografias, com frases – eles adoram e expõem esses trabalhos nas paredes dos quartos. Estão mais acompanhados, também, com essas manifestações mais directas de carinho e de afecto.

Na adolescência tem de haver uma adaptação ao corpo, fruto das transformações naturais que todos nós experienciamos. No caso do adolescente, tem de haver, de igual forma, uma adaptação ao corpo doente. Trata-se de uma adaptação dupla.

Essa é uma questão muito importante. Temos aqui casos graves que acarretam risco de vida, há tratamentos muito invasivos que comprometem a integridade física como, por exemplo, acontece no caso de uma amputação. Nestes casos, as pessoas têm alta, mas não saem iguais ao que entraram. Quanto aos adolescentes, eles são, de facto, fantásticos, porque desejam que a vida volte, rapidamente, ao normal. Eles são fantásticos, mas há, realmente, todas estas questões que giram em torno do corpo e da sua transformação. Tem de haver, por isso, todo um trabalho que é prolongado e que tem de ser feito, também, depois da alta. De facto, sabemos que, quando a integridade física é atingida, isso mexe muito com a noção do próprio corpo e o impacto é bastante grande. Pode, também, contribuir para o aumento das sequelas futuras, mesmo no pós-operatório. Podem ter alta mas não vão iguais ao que entraram, não é?

A uma rapariga atropelada por um autocarro, por exemplo, foram-lhe amputados dois dedos dos pés. Ela própria falava sobre o período de verão, ao usar sandálias ou havaianas, como iria ser e como iria lidar com isso. A questão é que há uma exposição muito grande. Há aqui todo um trabalho de reflexão, de aceitação, de exteriorização desta angústia, deste corpo que não era o dela, mas que quer aceitar. De facto, os adolescentes são fantásticos, com uma capacidade de compreensão e de desejo que a vida continue, fora de série. Querem que a vida volte, rapidamente, ao normal e, portanto, têm aqui uma motivação muito grande. Isso exige, no entanto, um esforço, aceitação e adaptação extremos. Portanto, eles são maravilhosos, mas a sua consciência do que é diferente é muito superior à de uma criança.

Tivemos uma criança que levou um tiro num olho e ficou sem ver. Claro que foi uma coisa que lhe custou e que teve impacto, mas não teve o mesmo impacto de perda como teria se estivesse na adolescência. Quase todas as questões à volta do corpo não se colocam nos mesmos moldes quando falamos de um adolescente. Na adolescência, essa consciência é muito superior por causa da importância da própria imagem e do que sentem que interfere na integração nos grupos. Há, portanto, aqui, todo um trabalho que é mais ou menos prolongado, mesmo após a alta.

Falou da adaptação do corpo amputado e muito bem. Mas também não tem de haver uma adaptação à dor física em si, fruto da doença? Porque, lá está, antes não seria normal o corpo doer.

Há certos procedimentos que envolvem um grau grande de dor, nomeadamente no caso das amputações. No entanto, a reação a esta dor vai depender de múltiplos fatores, como a própria resistência de cada um, do tempo de internamento (que, quanto mais prolongado, poderá aumentar a reatividade e diminuir a tolerância), do tipo de procedimento e suas consequências, entre outros. Muitas vezes, nos casos mais exigentes, é chamada a equipa da dor que intervém, quer ao nível da analgesia, quer de técnicas específicas de relaxamento para maior controlo na exposição à dor, como, por exemplo, técnicas de hipnose.

Falou, também, que alguns efeitos psicológicos podem prolongar-se após o internamento. Quais, especificamente, esses efeitos e como devem ser prevenidos ou encarados?

Agressividade, zanga, revolta, birras nos casos dos mais pequeninos, alterações do sono, desinteresse pelas actividades gerais do seu dia-a-dia. Vamos pensar que isto são reações normais, que fazem parte do contexto da hospitalização ou no regresso e adaptação a casa. O que devemos ter em conta é quando essas alterações de comportamento prevalecem ou se intensificam. É fundamental que se distinga isso. Se se intensificam, prevalecem ou contaminam outras áreas da vida da criança, como, por exemplo, menor interesse escolar, maior recolhimento ou isolamento. Então, há indicação para ser observada por um técnico de saúde mental.

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