‘Sombrou Dúvida’ consolida o psicadelismo característico dos Boogarins

por Lucas Brandão,    9 Maio, 2019
‘Sombrou Dúvida’ consolida o psicadelismo característico dos Boogarins
Capa do disco
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Os Boogarins já quase dispensam apresentações em Portugal. Depois do sucesso de Lá Vem a Morte, que deu lugar a concertos vários pelo mundo fora, inclusive alguns aqui por Portugal, a banda brasileira regressou aos estúdios e gravou Sombrou Dúvida — o quarto álbum de Dinho (vocalista), de Benke Ferraz (guitarrista e teclista), de Raphael Vaz Costa (baixista) e de Ynaiã Benthroldo (baterista). Com traços de um psicadelismo que remonta aos tons ácidos e experimentais dos anos 60 e 70, a toada mantém-se como uma identidade firme e incomum nas melodias compostas e entoadas no Brasil, o que permite ao grupo destacar-se e consolidar-se como uma das mais características do país. A chancela da editora Overseas Artists permitirá que este seja o primeiro disco da banda com distribuição mundial, marcando uma aposta séria na música vanguardista destes lusófonos.

Boogarins

O arranque deste álbum é marcado pel’“As Chances”, nas quais fruímos de um autêntico mergulhar no esfuziante fantástico da música eletrónica dos Boogarins, mas também de mais algum apetrecho lírico. A gravidade na qual a música flutua também se cruza com o celeste que é invocado na música, onde o sentido da fuga está bem presente. Segue-se “Sombra ou Dúvida”, um dos singles lançados e cuja contração empresta o nome a este disco. Aqui, assiste-se à habitual compleição instrumental, mas em busca de uma certeza, de uma realidade que não só as notas e os seus momentos estridentes constroem. “Invenção” é o outro dos singles previamente lançados, que também prolonga esta navegação por um registo bem pautado, mas com uma desestabilização assente na música da voz e do instrumento. É a invenção que assume para a música, resultante de um compromisso com o que é feito de novo e de invulgar. Apaga-se, assim, a definição para o deslumbre da criação.

O discurso torna-se disléxico com “Dislexia”, mas não fruto da troca de letras ou de erros frásicos. É outra vez esta desarmonia com a normalidade, esta contranatura que impulsiona a música dos Boogarins e que os demarca na sua própria celestialidade. Denota-se, à imagem das últimas duas canções, uma presença de notas mais garridas e agudas, para além de uma presença mais robusta do plano de quem as ouve. A letra torna-se, por momentos, impercetível, tamanho o irradiar instrumental que predomina nesta faixa. Forma-se “A Tradição”, com notas mais baixas e suaves, mas também com um soltar de ideias e com um fluxo criativo que não é fácil suster. Se é exigido permitirmos a liberdade artística de quem se assume como artista, assim se deixa que flua e que se escreva. “Jogam-se as ideias no ar”, assim como a música o diz e o faz.

As sintonizações voltam a ser trémulas em “Nós”, à imagem de uma hipotética dualidade que tanto é vincada nas relações humanas. A desarmonia correlaciona-se com a forma como cada um lida com os outros e com a vertigem da mudança das relações que se estabelecem do ontem para o hoje, até ao amanhã. A energia consegue, por surpreendente que seja, subir com “Tardança”, num plano ainda mais estridente e dinâmico. É dos solos dos instrumentos que grande parte desta música é feita, com um vigor que roça a transcendência e o plano dos sonhos. O “Desandar” que os Boogarins, de seguida, desenrolam, tem um clima de proximidade e de alguma intimidade, numa transparência que a própria música não cessa de transmitir. Fala-se da identidade deste grupo como algo que se cruza com o Sol como um cometa que descreve a sua trajetória nos céus que configuram as partituras, traduzidas pelas ondas sonoras que encantam quem as ouve. São fundos melódicos aqueles que corroboram esta intimidade sugerida e suscitada nesta constelação de idiomas instrumentais.

“Te Quero Longe”, mas perto na ternura do tratamento musical e lírico. É a música que consegue transmitir e, de alguma forma, suprir a distância que é cravada pelos laços que a vida soube atar. Esta canção torna-se, assim, mais reflexiva e introspetiva, embora sintonizada com as linhas mais ténues da composição musical; alinhada com os pretextos mais íntimos da emotividade humana. O som amplia-se enquanto se exprime esta dimensão, tão volátil e sensível, tão delicada e vulnerável perante os rasgos que também a música sabe, não só compreender, mas, em ocasiões, atingir. Termina-se este percurso com “Passeio”, um caminho percorrido ao sabor de um convite dos brasileiros para um despojamento dos supostos sentidos que a normalidade configura e que a música sabe bem suplantar e superar. Fica ao critério de cada um saborear, conforme o seu gosto, esta viagem interestelar, por entre os raios de luz mais ou menos visíveis e audíveis que dão sentido e realização ao ser cada vez mais etéreo dos Boogarins, assim como do seu alinhamento com um plano que se eleva do registo monocórdico e arrastado que habitua e conforma.

Da irreverência que caraterizou o arranque da carreira deste grupo de jovens brasileiros, sente-se uma mudança de dimensão mais concreta neste novo trabalho. Há uma proximidade maior das estrelas e do celestial, há um plano de querer ser diferente sem alguns tiques que a imaturidade também denota. Conforme é habitual naqueles que se sabem adaptar e reconstruir no percurso da criatividade, a evolução é um percurso normal e natural, que se ajusta às exigências que o imaginário e a realidade pedem. Os instrumentos fazem-se ouvir consoante os espíritos se alinham com pretextos mais elevados, e, deles, nasce a harmonia que Sombrou Dúvida revela e, tão bem, compacta. Sombrou Dúvida? As dúvidas dissipam-se e as sombras iluminam-se. Os Boogarins já dão música com(o) as estrelas.

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