Sofrimento e poesia homérica

por Frederico Lourenço,    11 Abril, 2019
Sofrimento e poesia homérica
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A Odisseia, como se sabe, propõe-nos um mundo simples (e francamente irreal) onde os bons singram e os maus soçobram. O sofrimento humano é visto em termos de castigo divino por erros conscientemente cometidos pelos homens.

Na Ilíada, não é assim. A realidade é mais dura: antes de mais, porque é real. A relação entre erro humano e castigo divino não é de todo directa. Por outro lado, a possibilidade de uma vida feliz parece ser frontalmente posta em causa. Não há outra perspectiva para a vida humana além do sofrimento.

No entanto, a Ilíada (que, ao contrário da Odisseia, não admite bem-aventurança depois da morte) propõe uma circunstância redentora para a vida humana: levarmos os nossos objectivos até ao fim, custe o que custar, doa a quem doer, e nunca abdicarmos do bem supremo pelo qual devemos lutar com unhas e dentes (ou, melhor dizendo, lanças e espadas): a nossa própria auto-estima.

Morrer é uma obviedade tão patente que se torna banal. Viver em conformidade com o respeito que cada ser deve a si mesmo é que torna quem tal alcança único, excepcional, heróico. Esses acabam por não morrer, porque é desses que “reza a história” (entendendo por “história” poesia).

Ao mesmo tempo, a Ilíada dá-nos a figura de uma pessoa que, além de respeitar o sagrado dever homérico da auto-estima, é capaz de pôr o bem alheio acima do próprio. Trata-se de Heitor, o príncipe troiano, a figura modelar da poesia homérica, que nos revela o que há de melhor no ser humano. Não é por acaso que a Ilíada termina com a morte de Heitor – e não, como se esperaria, com a morte de Aquiles ou com o saque de Tróia.

Ao funeral de Heitor – e ao verso esmagadoramente lapidar com que termina a narração – seguir-se-á aquilo que o filósofo alemão Arthur Schopenhauer chamaria mais tarde o vazio do nada? Na perspectiva de Homero, não: segue-se é a memória (que a poesia preserva) de uma vida exemplarmente vivida.

Paradigmáticas são também as outras vidas de que a Ilíada nos fala: umas vividas até ao limite, outras abruptamente ceifadas. O que ressalta neste espelho da condição humana é como tantas vezes os homens colocam o inatingível como único objectivo capaz de lhes proporcionar a felicidade. A vida é trágica, mas os autores da tragédia somos nós mesmos.

Vezes sem conta na Ilíada, vemos as personagens esforçando-se por alcançar um desiderato urgente e avassalador, cuja possibilidade de concretização à partida não é possível. Aquilo que mais se deseja – aquela condição única e insubstituível para a felicidade – é algo que desde logo está fora do nosso alcance.

Esta irracionalidade das paixões humanas não é exclusiva dos seres humanos; também os deuses sofrem da mesma doença. Expressiva é a figura da deusa Hera, permanentemente insatisfeita, porque a condição para ser feliz (o amor exclusivo de Zeus) é-lhe sonegada pela natureza cósmica das coisas.

Assim, a Ilíada exerce sobre o leitor uma espécie de pedagogia: as cores garridas e sangrentas com que o sofrimento humano é pintado servem para que afinemos o nosso próprio diapasão interior; servem para nos mostrar a loucura dos desejos humanos, ao mesmo tempo que a forma poética, por meio da qual esses desejos nos são veiculados, nos permite vislumbrar aquilo que faz da vida um percurso que, afinal, vale a pena enfrentar: a capacidade que a palavra poética tem de fazer sentido de tudo isto.

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