Sófocles antes de Freud

por Frederico Lourenço,    24 Março, 2019
Sófocles antes de Freud
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Quando comecei a aprender latim e grego, acreditei piamente na frase que me era dita pelos meus professores: «o latim e o grego tornam as pessoas mais inteligentes».

Depois veio aquele dia na Faculdade de Letras de Lisboa, em que o Professor Raúl Miguel Rosado Fernandes nos disse que, se o latim tornasse as pessoas mais inteligentes, não haveria tantos latinistas estúpidos.

Todo um universo ruiu à minha volta? Acho que não.

O latim e o grego podem não fazer de uma pessoa estúpida uma pessoa inteligente, mas permitem à pessoa inteligente expandir a sua inteligência, na medida em que são línguas que põem à disposição do cérebro trilhos de pensamento que estão fechados a quem domine somente uma ou mais línguas modernas. O modo como entendemos a linguagem (e o que esta consegue materializar em termos de processos mentais conscientes e inconscientes) expande-se – eu diria exponencialmente – graças à aprendizagem do latim e do grego.

Esta aprendizagem tem consabidamente uma fase inicial desafiante, que é a familiarização com uma morfologia cuja dificuldade deixa línguas modernas como o português a perder de vista (embora a morfologia do português não seja fácil). Ultrapassada essa fase difícil da interiorização, começam a chover os benefícios. Muitas pessoas se interessam por línguas clássicas porque leram Homero ou Sófocles ou Vergílio em tradução – o que significa que, mesmo em tradução, o efeito de deslumbramento causado por esses poetas é considerável.

No entanto, a experiência de ler esses autores na língua em que escreveram traz consigo uma revolução mental: de repente, o texto (em grego ou em latim) surge aos nossos olhos sem véu. Segundos e terceiros sentidos implícitos em frases de que, em português, qualquer ambiguidade estava arredada vêm à tona. Um texto de certezas planas em português torna-se um terreno acidentado em grego ou em latim.

E, se estivermos a ler um daqueles génios supremos como Sófocles ou Vergílio (na minha opinião os mais geniais artífices da linguagem humana que alguma vez li), ficamos boquiabertos com a sua capacidade de criar um universo de sentido a partir de uma só palavra; ou de fazer com que a própria poesia faça comentários «freudianos» a si mesma pelo uso espantoso de meios linguísticos disponíveis em grego e latim, mas intransponíveis em tradução.

Um exemplo expressivo disto é-nos dado pela fala com que abre a tragédia «Rei Édipo» de Sófocles. É a Édipo que cabe abrir a peça, com um pequeno discurso de treze versos dirigido a um sacerdote, que veio ter à porta do palácio com um grupo de suplicantes.

Édipo começa por perguntar o que estão aquelas pessoas a fazer ali à porta. Depois afirma que tem consciência de que a cidade está em crise (trata-se de uma epidemia de peste). Na sua terceira frase, Édipo descamba para o auto-elogio, ao sublinhar que ele poderia ter-se informado sobre a situação na cidade por meio de mensageiros, mas que preferiu vir informar-se em pessoa, ele, «Édipo, famoso aos olhos de todos» (este verso esteve certamente na mente de Vergílio quando, logo no Canto 1 da Eneida, ele coloca na boca de Eneias a auto-descrição auto-elogiadora «sum pius Aeneas… fāmā super aethera nōtus»).

No final deste pequeno discurso, Édipo afirma-se disponível para fazer tudo para ajudar a cidade. As suas últimas palavras, no entanto, abrem as comportas de uma torrente de ambiguidade, devido à forma que Sófocles escolheu dar-lhes. Nesta sua apresentação inicial de Édipo, Sófocles poderia ter posto na boca do seu herói uma frase clara, em que ele afirmasse de modo concreto que QUER fazer tudo para ajudar a cidade em crise. No entanto, é logo no verbo que significa «querer» que Sófocles introduz a ambiguidade, porque ele usa uma construção em grego que sabota esse «querer».

A construção em causa é o chamado «genitivo absoluto» (equivalente ao «ablativo absoluto» em latim) usado aqui por Sófocles com a intraduzível partícula ἄν nos versos 11-12 do «Rei Édipo» na substituição da apódose de uma frase condicional implícita (quem não conheça esta terminologia pode dar uma vista de olhos à p. 330 da minha «Nova Gramática do Latim»).

Isto leva a que a frase, dita por Édipo em grego, tenha dois sentidos possíveis, estando sempre implícitas as palavras entre parênteses retos: «[se eu pudesse ajudar,] eu quereria ajudar»; ou então «[se eu tivesse podido ajudar,] eu teria querido ajudar». A primeira frase em grego seria uma condicional hipotética (εἰ δυναίμην, θέλοιμι ἄν); a segunda, uma condicional irreal (εἰ ἠδυνάθην, ἤθελον ἄν).

Não é possível decidir qual das duas frases inconscientes é a que está implícita no que Édipo diz, pois Sófocles faz de propósito para que ambas fiquem no ar, em aberto, a minar de forma «freudiana» aquilo que Édipo está ostentivamente a dizer aos suplicantes, quando afirma que quer ( ) fazer tudo para ajudar.

O consciente dele não está a dizer o mesmo que o inconsciente deixa transparecer.

As línguas clássicas tornam-nos mais inteligentes? Não sei, mas sobre esse tema até estou disposto a dar o benefício da dúvida ao saudoso Professor Rosado Fernandes. Por outro lado, pôr a falar assim, em simultâneo, o consciente e o inconsciente de Édipo é algo que Sófocles consegue graças a uma palavrinha em grego – ἄν – que, logo por azar, não tem tradução para nenhuma língua moderna.

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