Sobre o texto do Natal

por Frederico Lourenço,    16 Dezembro, 2018
Sobre o texto do Natal
Adoração dos Magos (tema que surge somente em Mateus) por Gentile da Fabriano
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É dado assente já desde o século XIX que a narração da natividade de Jesus feita por Mateus é incompatível com a de Lucas (pois, em Mateus, José e Maria são naturais de Belém, ao passo que, em Lucas, eles são naturais de Nazaré; em Mateus, Jesus terá nascido antes de 4 a.C., ao passo que, em Lucas, terá sido depois de 6. d.C.; em Mateus há magos, mas não pastores; em Lucas há pastores, mas não magos; etc.).

No entanto, há uma coisa que ambas as natividades têm em comum: levantam surpreendentemente poucos problemas (se pensarmos no que é o normal no Novo Testamento) no que toca ao correcto estabelecimento das suas palavras exactas.

O maior problema na natividade de Lucas (se «boa vontade» deverá estar em genitivo ou em nominativo) já foi tratado por mim noutro post.

O maior problema na natividade de Mateus é mais subtil. Trata-se de Mateus 1:25.

O evangelista terá escrito, referindo-se a José, Maria e Jesus:

(1) «e ele [José] não a conheceu [isto é, não teve relações sexuais com ela], até que ela [Maria] tivesse dado à luz um filho»?

Ou terá escrito:

(2) «ele não a conheceu, até que ela tivesse dado à luz o filho dela primogénito»?

A formulação (1) da frase é o que lemos nos manuscritos completos mais antigos do Evangelho de Mateus, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, ambos do século IV.

A formulação (2), no entanto, está atestada numa esmagadora maioria de manuscritos do Evangelho de Mateus. É por isso que, na tradução seiscentista de João Ferreira de Almeida, lemos «e não a conheceu até que pariu a este seu filho, o Primogénito».

Os estudiosos que analisam o texto do Novo Testamento sob uma perspectiva crítico-histórica consideram que o texto original é a formulação (1): não só é o que lemos nos manuscritos mais antigos, como também na antiquíssima tradução de Mateus para siríaco.

Estudiosos, porém, que estão filiados (por exemplo) no protestantismo evangélico entendem que a versão (2) é que é a certa, porque tem a vantagem de nos dar a ler uma frase de Mateus reconfortantemente coincidente com Lucas (2:7).

Estas compatibilizações textuais entre os quatro Evangelhos foram acontecendo ao longo da transmissão do texto: é de supor que, nos primeiros anos da sua existência textual, os quatro Evangelhos fossem bem mais diferentes entre si do que passaram a ser mais tarde (sobretudo na época bizantina).

Será muito importante saber se Mateus escreveu «um filho» (como se lê na minha tradução) ou «o filho dela primogénito» (como se lê em Ferreira de Almeida)?

Provavelmente não.

O que é importante, sim, é termos consciência da incrível fluidez do texto dos Evangelhos (com tantas versões paralelas, documentadas pelos manuscritos existentes) até mais ou menos ao século VI.

As pessoas que se sentarem na igreja no Natal (a ouvir as leituras do Novo Testamento na missa do galo católica ou no culto protestante) devem lembrar-se de que o texto que ouvirão é uma espécie de palpite: possível, sim, mas isento de certeza.

 

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