Sobre o coronavírus e sobre nós

por Luís Osório,    12 Março, 2020
Sobre o coronavírus e sobre nós
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Manuel Luís Goucha e o marido partilharam alguns vídeos da sua viagem à Áustria e (creio) a Londres. Em dois curtos registos brincaram com o Coronavírus – num caso “gozando” com os chineses e no outro com um homem que adormecera no avião.

A cobertura noticiosa sobre esta pandemia tem sido desigual. Nuns casos muito boa, noutros superficial e noutros sensacionalista. Para vários meios, sobretudo televisivos, o que conta é a voragem. Quantos casos, se já há mortes, quais os erros, qual a pergunta mais implacável que podemos fazer, etc.

Ontem, na praia de Carcavelos estiveram centenas de pessoas. Umas em cima das outras aproveitavam o maravilhoso tempo e relaxavam.

Já hoje, Joaquim Miranda Sarmento, homem das finanças de Rui Rio, numa entrevista ao Público afirmou qualquer coisa como isto: agora é que vamos ver se Mário Centeno é ou não o Ronaldo das Finanças.

Os quatro “acontecimentos” estão mais ligados do que parecem.

Manuel Luís Goucha é uma estrela de televisão. Há mais de trinta anos que apresenta diariamente programas em que as pessoas e os seus dramas e alegrias estão no centro. Fez largos milhares de entrevistas. A pessoas felizes e infelizes. A pessoas interessantes e não interessantes. A mulheres que foram batidas por maridos. A mães que perderam os filhos. A campeões, assassinos, corruptos, skinheads e santos. Os vídeos que publicou das suas férias mostram duas coisas: que é bem-disposto (o que é excelente) e que perdeu toda a ligação à realidade. Para Manuel Luís Goucha a realidade é uma abstração. As pessoas são abstrações. O seu sofrimento é apenas parte do seu décor televisivo. Ao fim de tantos anos a ouvir dramas ele já não sente nada porque se transformou na própria máscara que inventou para se proteger. Não é fácil ser uma estrela.

O jornalismo hoje é diferente do tempo em que comecei. Passaram mais de 25 anos, é normal que tenha mudado. Tem sido uma evolução que não é apenas negativa, mas a rapidez motivada pela revolução tecnológica (em múltiplas dimensões) levou a que se chegasse à paranóia angustiante de um jornalismo transformado numa série de entretenimento. Uma série que oferece à audiência o que ela quer, não o que ela precisa para estar realmente informada. Como para Goucha e o namorado, o sofrimento é uma abstração e um instrumento poderoso de conquista de audiências.

Nas praias do Sul largas centenas de jovens, filhos deste tempo, banharam-se encavalitados uns nos outros. Qual vírus, qual preocupação, qual medo? E quem os pode levar a mal? A televisão, as notícias, os vídeos nas redes sociais são parte de uma encenação, parte de alguma coisa que não é bem real, é (lá está) uma abstração. São uma geração que vive num mundo virtual em que o vírus (e toda a realidade) é a única coisa que detetam ser fake.

O homem que Rui Rio escolheu para ser seu porta voz para as Finanças poderia ter dito na entrevista ao Público. “Este é o tempo em que devemos confiar e colaborar. Estarmos vigilantes, mas disponíveis para ajudar no que for preciso, é uma emergência mundial e também nacional. No final veremos, se for caso disso, o que falhou, no final perceberemos se este governo esteve à altura e se o ministro Centeno é mesmo o Mourinho das Finanças”. Mas não, o que o senhor disse foi: “Agora é que vamos ver se Mário Centeno é ou não o Ronaldo das Finanças”. Lamenta-se, mas não me admira. O drama do Coronavírus é instrumental do seu próprio desejo de que tudo corra mal. Não que ele deseje a morte de pessoas, certamente que não. Mas porque a morte e o sofrimento são, como acontece em todos os exemplos que dei, uma abstração.

O Coronavírus está para durar. Nos próximos dias, com alta probabilidade, os números dispararão. Todos estamos em risco. Não é virtual. Há milhares de pessoas que morreram e muitas mais irão morrer. Provavelmente gente das nossas famílias, amigos, conhecidos, ídolos. Não é uma coisa virtual, está a acontecer. Temos de nos preparar. Mas temos também, muitos de nós, de tirar as nossas máscaras de atores. Ser capazes de viver a vida real e não folhetins televisivos onde, em troca da nossa presença/audiência, oferecemos a nossa alma.

PS:
Excelente o papel de Rodrigo Guedes de Carvalho, na SIC. E incrível o protagonismo de Jorge Torgal, do Conselho Nacional de Saúde Pública. A mesma pessoa que há três semanas defendeu que o Coronavírus era igual a qualquer gripe, o que tornava ridícula a excitação das pessoas, foi o mesmo que anunciou que não há qualquer razão para o governo fechar as escolas. Haja paciência.

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