Slavoj Zizek, um dos mais consagrados pensadores contemporâneos

por Lucas Brandão,    19 Abril, 2020
Slavoj Zizek, um dos mais consagrados pensadores contemporâneos
Slavoj zizek / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)
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O seu pensamento procura desconstruir o marxismo tradicional aos olhos da atualidade, mesclando esta visão com a psicanálise de Jacques Lacan e com o idealismo do filósofo alemão Georg Friedrich Hegel.

Slavoj Zizek é um dos mais consagrados pensadores contemporâneos, sendo aquele que mais protagoniza a comunidade académica da Europa do Leste aos olhos do Ocidente. De muito contribui a sua própria globalidade, tendo funções profissionais em Londres, em Seul e em Nova Iorque. O seu pensamento procura desconstruir o marxismo tradicional aos olhos da atualidade, mesclando esta visão com a psicanálise de Jacques Lacan e com o idealismo do filósofo alemão Georg Friedrich Hegel. Algo que ajudou à transformação e à adaptação do seu trabalho foi a queda do bloco da União Soviética, que o fez problematizar a esquerda e que o fez abranger, com mais rigor e mais abertura, as culturas populares locais. Aliás, esta fusão entre a cultura erudita e a cultura popular ajuda-o a ter relevante atenção por parte das comunidades não-académicas, conhecendo uma reputação admirável para um académico.

Slavoj Zizek nasceu a 21 de março de 1949 na capital da Eslovénia, Liubliana, na então Jugoslávia. Cresceu numa família ateísta, filho de um economista e de uma contabilista. A formação que teve foi sempre muito exposta à cultura popular, mas também ao cinema do ocidente, o que o ajudou a ganhar afeição pelas ciências sociais e pelas artes. Iria descobrir a Filosofia em Zagreb, na Croácia, numa das suas viagens, acabando por estudar essa mesma área e Sociologia na Universidade de Liubliana. Nessa fase, já tinha desvendado muito do que se pensava a Ocidente, em especial em França – o estruturalismo – e na Alemanha – o pensamento de Martin Heidegger e dos seus herdeiros. Enquanto estudava, produziu muitos artigos em diferentes revistas, acabando por enveredar pela carreira académica pouco tempo depois. No entanto, a sua tese de mestrado seria denunciada como não-marxista, pelo que teve de retomar o seu esforço curricular. Dez anos depois deste obstáculo, que o impediu de assumir o cargo de investigador assistente na Universidade, concluiria o seu doutoramento, realizando uma tese sobre a importância teórica e prática do Estruturalismo francês, o movimento que o sensibilizou para esta área.

Depois de alguns anos sabáticos, entre os quais um de serviço militar obrigatório no exército jugoslavo, procurou traduzir e publicar diversas obras de autores que o fascinavam. Entre eles, e para além da filosofia marxista e hegeliana (a qual considera o auge da filosofia ocidental, como algo a ser resgatado para a atualidade), que o vinham cativando, também trabalhou em obras do francês Jacques Lacan e do famoso psicanalista Sigmund Freud. Zizek retomaria os estudos, desta feita completando um doutoramento em psicanálise na Universidade de Paris. Foi depois deste objetivo cumprido que começou a editar livros em nome próprio. Após uma obra referente à teoria do cinema, editado somente em esloveno e onde já procura aplicar o admirar psicanalítico com fundamento no género, aquela que viria a abrir as suas portas para o protagonismo a Ocidente seria “O Objeto Sublime da Ideologia”, lançado em 1989. Esta continua, ainda hoje, a ser a sua obra de referência, procurando sintetizar a sua linha de pensamento, que encaixava Marx e Freud num estudo da ideologia como algo que é extremamente vasto e poderoso, indo para além de todas as perceções e do seu entendimento objetivo das mesmas. A noção de “sintoma”, importada do pensamento de Jacques Lacan, procura perceber de que forma as relações de trabalho e de produção, intercaladas com o sonho, permitem desconstruir as forças de controlo da sociedade, de uma forma quase pós-moderna. Não descarta, da sua argumentação, várias referências literárias, musicais e cinematográficas, como o cinema de Alfred Hitchcock ou a composição musical de Richard Wagner.

Esta obra abriu-lhe, assim, importantes portas para colaborar intensivamente com a imprensa local e internacional. De igual modo, e já bem após a queda do marechal Josif Tito, o líder governamental da Jugoslávia até ao ano do seu falecimento, 1980, de quem era crítico, juntou-se ao Partido Comunista da Eslovénia, embora dele saísse pouco tempo depois. Isto após entrar em desacordo, em conjunto com outros seus camaradas, com o julgamento de um caso que penalizou alguns jornalistas que criticaram a atuação da ala juvenil do exército jugoslavo. Assim, no final da década de 1980, envolver-se-ia muito ativamente pela democratização da Eslovénia, que se concretizaria com as primeiras eleições livres no ano de 1990, associando-se ao Partido Democrático Liberal e assumindo-se como o seu primeiro candidato presidencial. Após perder estas eleições, saiu do partido, embora persistindo fiel aos seus ideais de esquerda e até marcadamente comunistas. Continuou, assim, muito crítico do crescente conservadorismo e dos nacionalismos emergentes no seu país e noutros vizinhos, tendo gerado, por essa razão, muita animosidade à direita, embora crescentes apoios e atenções despertadas à esquerda.

Para isso, contribuiu a sua presença em diversos documentários, como “A Realidade do Virtual” (2004), em que dá uma palestra de uma hora sobre a interpretação que faz do pensamento e do trabalho de Jacques Lacan. “Zizek!” (2005, da americana-canadiana Astra Taylor) procura traçar o seu perfil; com “O Guia de Cinema do Depravado” (2006, da inglesa Sophia Fiennes) conta com a interpretação psicanalítica do esloveno de uma série de filmes de diferentes realizadores, como Stanley Kubrick, Andrei Tarkovsky ou David Lynch. Em 2011, “Marx Reloaded”, do britânico Jason Barker, Zizek é um dos filósofos entrevistados para falar sobre o pensamento de Karl Marx aos olhos da recessão económica de 2008, ano em que também foi entrevistado por Astra Taylor para o filme “A Vida Examinada”, procurando estabelecer paralelismos entre a vida das grandes metrópoles e as suas ideias filosóficas. Em 2012, regressa aos moldes do Guia de Cinema feito em 2006 e faz, em conjunto com Sophia Fiennes um outro, desta feita da ideologia, abrangendo um lote distinto de filmes, que inclui o trabalho de Martin Scorsese ou de Robert Altman.

Os conceitos e a visão filosófica

A linha de pensamento do esloveno durante o seu percurso investigativo desenha-se, conforme referido, com alguns referenciais marcantes, essencialmente o de Karl Marx, o de Jacques Lacan e o de Hegel. Zizek problematiza Marx no fundamental, isto é, naquilo que é a definição das coisas. Recorre ao francês Louis Althusser para defender a ideologia como algo inconsciente e como um conjunto de diferentes fundamentações e rituais simbólicos e sociais que suportam autoridades visuais, não sendo algo que, conforme Marx argumentava, era comunicado pela superestrutura definidora das relações sociais e económicas de uma sociedade. Assim, o real é algo que é experienciado através dos sistemas predominantes de representações e das reproduções, embora podendo mostrar resistência a esses sistemas. É isso que, aos olhos de Zizek, pode evidenciar a criação de resistência política.

O sujeito filosófico torna-se visto como algo negativo, que necessita e que permite que o sujeito transcendente se mostre – o cogito cartesiano -, embora revele as inconsistências do real, que podem ser vistos de diferentes perspetivas simbólicas, que conduzem a interpretações proporcionais. Assim, só aquilo que se pode entender como o “real simbólico” separa-se do “real real”, sendo que este não se consegue enquadrar na ordem simbólica dominante. No entanto, o “real simbólico” acaba por se restringir a um grupo de significantes que, por si só, não conseguem integrar-se plenamente num sujeito, sendo que a verdade é algo que se vai revelando enquanto se vai transitando de contradição em contradição.

Assim, a perspetiva de Zizek, de um ponto de vista da existência do ser humano e do estudo daquilo que é real (a ontologia), é que as perceções infinitas que podem ser feitas à luz de um materalismo reducionista – isto é, que comprime o entendimento do que é real a um conjunto de conceitos – são sempre contrapostas à experiência vivida. Desta forma, estas contradições só podem ser superadas com o olhar de Hegel misturado com a psicanálise de Lacan, ou seja, com o sentido da atualidade se cumprir e de poder construir aquilo que é o mundo real através das ideias, ideias essas que bebem não só da filosofia de Marx, mas também da teoria quântica e dos novos caminhos da filosofia contemporânea. Aquilo que se torna verdadeiramente novo é mesmo a inclusão da dimensão inconsciente, importada de Lacan, como forma de analisar e de entender o comportamento dos indivíduos e das sociedades à luz das ideologias subjacentes, abrindo as portas para um “real” mais amplo, suportado nas formas simbólicas desse inconsciente.

É com estes olhos idealistas que enquadra a sua visão política. Assim, enquadra a estrutura do Estado como um sistema de instituições regulatórias que delineiam aquilo que é o comportamento dos seus cidadãos. É um poder que, acima de tudo, é simbólico, não tendo força normativa para lá do comportamento coletivo. A lei atua, assim, como os princípios básicos da sociedade que o Estado regula, podendo concretizar-se, contudo, na proibição de algumas atuações por parte de cidadãos ou de grupos de cidadãos. As decisões políticas, com o tempo, têm-se tornado, ao olhar do pensador, despolitizadas e aceites pelos indivíduos como conclusões naturais, como necessidades objetivas, apesar de poderem ser mais ou menos polémicas. Essas decisões são feitas, não com a finalidade da população, mas sim em função do capital, por mais que se assinale a maior democratização do Estado e, com ela, a maior participação dos indivíduos nas decisões políticas.

Para ilustrar essa ilusão, alude aos Estados Unidos e ao seu bipartidarismo e reivindica a necessidade de, através de pequenos conflitos, poder adaptá-los a alavancas para eventuais transformações ao nível do sistema e da desconstrução das suas injustiças. O conflito político é definido, assim, como algo que está entre uma estrutura ordenada da sociedade e o que não tem lugar nessa mesma ordem. Essa falta de enquadramento permite, por um lado, gerar conspirações contra a forma de funcionamento do Estado, embora, ao invés de haver uma oposição concertada a este, aquilo que é feito é o depositar de confiança e de esperança no Outro, como forma de escapar à forma como o Estado funciona. A própria moralidade das ações é colocada em causa, havendo uma crescente falta de perceção do que aquilo que é feito, ofuscando os valores do bem e do mal em função de um chip que automatiza o comportamento. Assim, embora percebendo a dimensão ideológica sobre a qual vivem, essa alienação permanece viva e verificável. A própria religião não encontra, assim, forma de superação, embora Zizek encare o seu fundamentalismo como uma forma camuflada do comunismo estalinista, prezando mais a vontade divina e a salvação concedida do que a própria ação ética ou moral.

O esloveno, apesar de ganhar uma ampla notoriedade no que toca ao seu pensamento filosófico e sociológico, é visto, pelos seus críticos, como alguém que carece de uma posição consistente em relação ao marxismo como arma para uma revolução ao nível do pensamento e do comportamento. Para além disso, as suas ideias não são comunicadas de forma clara e evidente, sobrepondo-se umas às outras, procurando provocações através de paradoxos entre a filosofia e a psicanálise. Esta fusão é, precisamente, o suporte para a fundação da linha de pensamento de um grupo de pensadores da Universidade de Liubliana, protagonizada por Zizek e provocada pelo estudo de Jacques Lacan e interligada ao idealismo alemão e ao marxismo. Ajudou a que idealizasse, pouco depois, a Sociedade da Psicanálise Teórica, que permitiu que o grupo pudesse editar e publicar as suas obras.

Para lá desta espiral de críticas e da sua postura filosófico-política, houve outros conceitos introduzidos por Zizek. Embora espelhem a permanente influência de Lacan, são noções que acabam por se deslocar dos temas centrais do seu pensamento. Assim, a interpassividade é algo que, pensado ao lado do austríaco Robert Pfaller, se revela como um estado de passividade perante a potencial interatividade. Ou seja, acaba por ser uma forma de perceber como é que determinados trabalhos ou obras, que visam estabelecer comunicação, acabam por se comunicar e não comunicando para fora. O exemplo que o pensador usa é o de uma cassete: após gravar um filme, aquele que a tem – e, a esta, juntam-se outras cassetes com filmes – acaba por ver menos filmes porque os pode gravar e tê-los consigo. O vídeo faz, por ele, a visualização do filme para que o indivíduo possa estar disponível para não o ver. Acaba, assim, por ser um paralelismo que pode ser aplicado a outros casos, como os meios de comunicação convencionais, sendo que a cassete interage com ela mesma ao ponto de quem o quer ver não o possa fazer. Isto acaba por possibilitar que o indivíduo seja um objeto do próprio meio, invertendo os papéis, abrindo portas a que outros modos de alienação se possam concretizar e que a emancipação se torne mais restrita.

O outro dos conceitos que é relevante no entendimento do pensamento de Zizek, embora possa ser entendido ao olhar das ideologias, é o de afirmação subversiva. Do ponto de vista cultural e artístico, é uma performance que, por denunciar de tal forma as ideologias vigentes, coloca-as em interrogação e em escrutínio. Os conceitos subjacentes às ideologias são revelados e, com isso, os artistas procuram distanciar-se desses mesmos conceitos. Zizek pensou neste conceito à luz do estudo do coletivo artístico Neue Slowenische Kunst (NSK, em português “Nova Arte Eslovena”) e da sua atuação, para além da banda Laibach, a ala musical deste coletivo. À luz da psicanálise de Lacan, vê a sua atuação, que, num primeiro olhar, parece uma imitação satírica da ideologia comunista, mas, de um ponto de vista subconsciente, pode ser interpretado como uma identificação excessiva com o superego que subjaz ao comunismo e a manipulação do processo de redireção inconsciente dos sentimentos do passado para o presente, para o Estado totalitário. Para que essa afirmação subversiva se torne bem-sucedida, é preciso endereçar-se a algo anónimo e não pode ser diretamente direcionada para algo ou alguém, reforçando a inconsistência de diretrizes simbólicas e alimentando a ideia de não haver um grande Outro, de origem transcendental. É isso mesmo que reconhece na produção artística do NSK, que não alimenta a ideia de ser, por fim, subversivo.

Obras de referência, para além da proeminente “O Objeto Sublime da Ideologia”, trazem ensaios (a coleção de ensaios “Slovenska Smer”, de 1996, que inclui Zizek e outros nomes, como Dimitrij Rupel, Tine Hribar, Joze Mencinger e Veljko Rus, pensadores seus compatriotas) e outros trabalhos colaborativos, como “Contingência, Hegemonia, Universalidade”, de 2000, escrito com a filósofa Judith Butler e o argentino Ernesto Laclau, apresentando uma tríade de perspetivas sobre o capitalismo e sobre a emancipação política à luz dos conceitos do livro. Zizek distingue-se dos demais autores por achar que o capitalismo não é o único regime em cima da mesa e por entender que a criança entra no seu mundo inconsciente no momento em que reconhece a distinção sexual entre masculino e feminino. Em nome individual, “Aproveita o Teu Sintoma” (1992, obra na qual discerne sobre a psicanálise lacaniana e o seu conceito de sintoma) e “Vivendo no Final dos Tempos” (2010, em que procura identificar as formas políticas e culturais de evasão à ideologia e de protesto político que se radicalizam, tornando-se parecidas com os efeitos do comunismo soviético).

Porém, e das demais, também se destaca “A Visão em Paralaxe”, de 2006, onde estuda diferentes nomes da filosofia, da política, da literatura, do cinema e até da neurociência, como António Damásio. Esta é a obra em que procura sintetizar o seu fluxo filosófico, científico e político, acabando por a organizar através destas três áreas, dotando o seu pensamento de alguma ordem conceptual. Em torno desta estruturação, está a paralaxe, que se refere a um aparente movimento de um objeto perante as diferentes perspetivas a partir das quais esse objeto pode ser visto e encarado. Recorre a Hegel para afirmar que essas perspetivas não se conseguem sintetizar e só podem ser perspetivadas dessa forma fragmentada, assumindo-as quase como as antinomias propostas por Immanuel Kant (conclusões que são, entre elas, contraditórias).

Estes fragmentos, que podem ser vistos como atributos bem distintos entre si, dão origem a diferentes camadas da existência humana. A neurociência faz parte desta fragmentação, separando-se da realidade corpórea que Zizek identifica. Do ponto de vista político, e reconhecendo que é na economia que as dificuldades se constatam, convida ao abandono das questões micropolíticas, encarando de frente a violência política mais ou menos reprimida, embora persistente e insuportável. A superação desse superego, que se tornou obsceno e repressivo, é visto como prioridade, embora também a própria dimensão da thanatos (em grego, a morte, conceito que Freud estudou) acompanhe e incorpore a vida de cada um. Não ajuda, a isso, a inveja em relação à alegria do outro, o que contribui para a manifestação de violência, com fundamento racista e nacionalista. A subjetividade humana permanece, assim separada e partida, possuindo uma fenda que, à escala da consciência, se torna de tal forma profunda que é uma distância que não consegue ser superada.

Slavoj Zizek é, pelo meio de um pensamento complexo e multidimensional, um dos pensadores mais denotados da atualidade. Convida o interesse da Nova Esquerda, ao mesmo tempo que faz levantar o sobrolho aos mais conservadores. Da sua raiz académica, o seu pensamento procura convidar a uma revolução mais através de uma denúncia e de algumas ideias do que uma proposta formal de reconstrução do pensamento contemporâneo (embora “A Visão em Paralaxe” procure encontrá-la). Não obstante, é indiscutível a sua influência a leste e a oeste, abrindo as portas, por intermédio da sua profunda produção bibliográfica, para o mundo para lá da comunidade académica. Contribuiu a sua presença política, que conseguiu fazer com que coexistisse com a sua carreira científica, permanecendo, ainda hoje, como um dos rostos de uma Eslovénia democrática e ativista, sustentada na cultura, na arte e na filosofia que a fez referência.

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