Shabason, Krgovich & Harris reimaginam uma Philadelphia bucólica e mais próxima

por Bernardo Crastes,    4 Dezembro, 2020
Shabason, Krgovich & Harris reimaginam uma <i>Philadelphia</i> bucólica e mais próxima
Capa do disco
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Num ano atípico em que muitos de nós passaram grande parte do nosso tempo em casa, é normal que tenhamos reaprendido a apreciar alguns detalhes mais mundanos da nossa vida — seja o vapor do chá quente a espiralar lentamente, a luz da manhã a incidir nos lençóis desfeitos, o reconfortante crepitar de um refogado… Isso significa que também os momentos em que saímos à rua — normalmente para nos afastarmos do bulício com passeios pela Natureza ou outras zonas menos populadas — trazem em si uma outra magia e gratidão.

São estas as sensações transmitidas por Philadelphia, o primeiro álbum do trio formado pelos multi-instrumentistas Joseph Shabason, Nicholas Krgovich e Chris Harris, cada um com a sua carreira musical já bem estabelecida. No entanto, apesar de Philadelphia evocar tudo isto e soar especialmente premente nesta altura, a sua gravação precede a pandemia. Após trocarem demos e criarem os rascunhos para as 8 faixas que compõem o disco, gravaram o disco em proximidade em Toronto, num ambiente descrito pelos próprios músicos como um esforço totalmente colaborativo, sem algum conflito ou discordância. Essa tranquilidade encontra-se bem impressa nestas músicas que evocam um soft rock sonhador, com toques de jazz, tornando-se numa banda sonora ideal para dias e noites mais reclusas, em que a ansiedade teima em acercar-se a nós.

Fotografia de Ali Bosworth

As letras cantadas por Nicholas Krgovich cimentam o seu estatuto como poeta do mundano. Já em “Ouch”, o excelente álbum que lançou a solo em 2018, documentou uma dolorosa separação com detalhes tão minuciosos que chegam a universalizar a sua própria experiência através da capacidade partilhada da mera observação. Aqui, adoptando uma técnica mais stream of consciousness, em que o primeiro pensamento é o melhor pensamento, escreve letras direccionadas às coisas mais cercanas, sem tentar atacar grandes temas como o amor.

Roubando o nome ao ritual japonês de limpeza pré-Ano Novo, “Osouji”, a porta de entrada do disco, faz logo questão de nos desacelerar, com as suas teclas balsâmicas e uma cadência pacífica. “Moving furniture / Wiping baseboards / The radio on / And seeing things / That have been hid / And considering them” descreve a cena doméstica por que muitos teremos passado este ano, no reencontro de um feng shui perdido na correria dos dias. Esta redescoberta do prazer das pequenas coisas é bem emulada por “Osouji”, com a sua textura familiar, mas que ao mesmo tempo readapta conceitos musicais dos anos 80/90 para a contemporaneidade. É daquelas faixas capazes de gerar pequenas faíscas, seduzindo-nos para o resto de um disco envolto numa névoa transformadora do ambiente que nos rodeia.

A faixa-título, versão da canção que Neil Young fez para a banda sonora do filme com o mesmo nome, toma aqui uma reinterpretação tão etérea e solene, que lhe perdoamos os melosos arranjos. Para além disso, a canção personifica o conceito de proximidade que a gravação do disco envolveu. A ode à cidade do amor fraternal (city of brotherly love, como carinhosamente é chamada) transcende o estatuto de oração que adquire no filme para algo mais fundamental, o poder curativo do amor. Mas não no sentido romântico, mais no sentido da base que construímos e das relações que estabelecemos para nos suportar e ajudar em tempos mais obscuros. Quantos de nós não terão esticado a mão — mesmo que apenas metaforicamente — a algum amigo ou amiga durante este período de afastamento, seja por nós ou pela outra pessoa?

Para arranjar um paralelo musical facilmente reconhecível, podemos comparar os arranjos esparsos encontrados em Philadelphia à sensibilidade polida dos Talk Talk. O melhor exemplo será “I Don’t See the Moon”, uma slow burner de 8 minutos e meio que nos envolve no seu baixo e na frase que lhe dá o nome, repetida como um mantra até a canção se esfumar, tão naturalmente como apareceu. Encontramos as suas influências também nas texturas dos sintetizadores de “Tuesday Afternoon”, cuja melodia plácida encontra o caminho para o meu cérebro frequentemente. É louvável criar algo tão sonoramente descomplicado e ao mesmo tempo tão apaixonante.

Para apreciar este álbum, basta seguir o conselho dado na esperançosa “Friday Afternoon”: “Wrap your loving arms around it” — um lembrete para apreciar o momento. Um carpe diem subtil e bucólico, inspirado por pores-do-sol bonitos, o vento a esfarripar a água saída de uma fonte ou outras imagens bonitas das quais nos consigamos lembrar. O bom da beleza é que cada um pode vê-la onde quiser. Philadelphia certamente inspirará muita gente a procurá-la.

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