Ser cristão na cama

por Frederico Lourenço,    10 Fevereiro, 2018
Ser cristão na cama
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Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.

Têm toda a razão os católicos que afirmaram nos últimos dias que não há nada de novo na ideia de que divorciados e/ou recasados, que queiram continuar a aderir a uma forma de vida católica, não podem ter relações sexuais. Não há a mínima dúvida de que essa noção é plenamente consentânea com os primeiros textos cristãos que nos chegaram (Paulo, Evangelhos canónicos, etc.) e também com textos que foram sendo escritos nos séculos II e III e que fazem parte da literatura cristã apócrifa. Aí não se coloca, como é óbvio, a situação de pessoas recasadas, mas sim a de cristãos casados em primeiras-e-únicas núpcias, para quem o supremo ideal de vida é viver o casamento em estado de perfeita virgindade da parte de ambos os esposos.

A incompatibilidade entre uma vida sexual activa e uma vida cristã está inscrita no cristianismo desde os seus primórdios. Basta lermos os três Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos, Lucas) para nos ser claríssimo que o sexo não faz parte do original projecto de vida cristão. O mesmo nos é transmitido pelas epístolas de Paulo. O cristianismo nasceu como revelação a anteceder por breves instantes a chegada do reino de Deus, onde «nem os homens terão mulheres; nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no céu» (Mateus 22:30).

É-nos difícil, após 2000 de cristianismo, termos esta noção da vida-sem-sexo que é inerente ao próprio DNA (digamos assim) da religião cristã. A ordem dada por Deus no Antigo Testamento (onde, já agora, o divórcio é perfeitamente consentido) de que os seres humanos se devem multiplicar não faz parte da mundividência nem do ideário que lemos no Novo Testamento. Nem o estilo de vida que hoje associamos ao catolicismo – a «família cristã» concebida em termos de laços de parentesco entre avós, pais, filhos, netos, etc. – tem cabimento no primeiro cristianismo. Nas palavras de Jesus, «se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a própria vida, não consegue ser meu discípulo» (Lucas 14:26). Este frase de Jesus encontra-se deturpada nas traduções feitas com intenção eclesiástica, mas não há volta a dar: é o que está no texto.

Entre os primeiros cristãos, havia, da parte de alguns, a convicção, baseada numa passagem do mesmo capítulo 14 de Lucas, que ser casado é já de si incompatível com a vida cristã e que as pessoas casadas serão excluídas do reino de Deus (ver a nota na p. 277 do Volume I da minha tradução).

A história do cristianismo mostra-nos a aceitação discreta de que tanto Jesus como Paulo (nas palavras que lhes são atribuídas no Novo Testamento) não transmitiram uma informação clara ao indicarem a vinda da nova ordem cósmica como algo de iminente, que aconteceria ainda durante a primeira geração de cristãos (que por isso teriam vantagem em ser abstencionistas de sexo): ver Lucas 9:27, 1 Tessalonicenses 4:13-18; 1 Coríntios 15:51-52; Romanos 13:11-12.

Afinal o mundo ainda existe ao fim de 2000 anos e os homens continuaram a casar com mulheres e as mulheres continuaram a casar com homens (e hoje homens casam com homens, e mulheres casam com mulheres). Os cristãos seguiram a natureza humana e continuaram a ter relações sexuais e a seguir a ordem dada por Deus na Escritura judaica («multiplicai-vos»), ordem que não entrava no esquema mental dos primeiros cristãos. Uma vida sexual activa, que não estava prevista na forma mais primordial do cristianismo, foi aceite como não comprometendo a salvação conquanto seguisse as normas de servir só para a procriação dentro do casamento cristão (que não admite divórcio, ainda que o Jesus do Evangelho de João nada diga sobre esse assunto). E não esquecer que o sexo cristão, entre marido e mulher, tem de estar isento de prazer (1 Tessalonicenses 4:4-5).

A grande questão que, na minha opinião, se coloca em relação ao sexo no seu entrechoque com a religião cristã é se vamos aceitar a noção dos primeiros cristãos de que o sexo é algo de intrinsecamente negativo, impuro e atentatório da elevação anímica – ou se vamos aceitar que os primeiros cristãos estavam equivocados na sua apreciação do valor do sexo na vida humana. Em última análise, cada pessoa terá de descobrir dentro de si própria se entende sinceramente que ter relações sexuais a mergulha num estado de impureza maculada ou não. Pessoalmente, continuo a achar que foi Platão (outro inimigo do sexo) a dar a resposta certa na boca de Pausânias no diálogo «Banquete»: o que conta não é o acto, mas sim a intenção com que é praticado. Cada pessoa que decida por si.

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