“Sem Palavras, Cem Palavras”: teremos sempre a música, Homem em Catarse terá sempre os poemas

por Ana Monteiro Fernandes,    4 Maio, 2020
“Sem Palavras, Cem Palavras”: teremos sempre a música, Homem em Catarse terá sempre os poemas
Homem em Catarse / Fotografia de Sónia Fernandes
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Reza a lenda que lirismo — que associamos, e muito bem, à poesia — provém de lira, instrumento esse utilizado na antiguidade clássica para acompanhar o canto ou a declamação de poemas. Reza a lenda, também, que lira era o instrumento de Orfeu, esse grande poeta e músico mitológico que enfrentou o submundo pela sua Eurídice. Esta pequena nota introdutória serve para lembrar que o significado que damos às palavras traz consigo uma longa história que, entre outras coisas, nos ensina que música e poesia sempre estiveram interligadas entre si e que são duas artes que não param de se contaminar uma à outra. Daí, não é de estranhar que Afonso Dorido — ou Homem em Catarse  tenha juntado estas noções num só álbum, Sem Palavras, Cem Palavras

E o que é que o título, que junta as palavras homófonas cem (quantidade) e sem (desprovido de), quer dizer? O álbum, totalmente instrumental e ‘sem’ palavras, na verdade serve de base a um poema do próprio Homem em Catarse com, precisamente, cem palavras bem contadas. Portanto, os temas, embora desprovidos de letra, dão vida, por si só, ao sentimento lírico e poético. É desta dialéctica constante entre a música e poesia que se alimenta o novo álbum de Homem em Catarse, que nos ensina que sim, a interacção entre as artes existe e é algo que, na nossa história, sempre foi feito, de alguma forma. “Sou crente num poema/ como sempre/ Ligação direta ao sentimento/ sem portagens nem empreendimento/ fulminante”, diz Afonso na sua poesia. E, como nos relembrou há tempos em entrevista, “há uma frase que era muito utilizada por mim — ‘a poesia é embrulhada em dedilhados atmosféricos’ — que continua a ser muito actual, vai ser sempre actual”. 

Embora reconheçamos neste novo álbum as reverberações características dos solos de Homem em Catarse na sua guitarra, há elementos novos que desbravam mais caminhos. A suavidade introspectiva, simples e intimista do tema inicial, “Tu Eras Apenas Uma Pequena Folha”, introduz-nos, pelo piano tocado por Afonso, a uma certa ambiência que tem tanto de lírica como de bucólica. Na sua suavidade e simplicidade, esta foi uma boa surpresa que Homem em Catarse nos ofereceu, visto que é a primeira vez que ouvimos o seu piano. A grande marca distintiva, no entanto, prende-se com uma maior incisão na electrónica, numa maior circularidade do som, das batidas e dos loops como, por exemplo, em “Hey Vini!” ou em “Yo La Tengo”, que servem de base à guitarra que sola em sobreposição. Sim, “Yo La Tengo” é uma referência directa aos Yo La Tengo. Como Afonso já havia dito à CCA e aqui relembro: “há, honestamente, um riff da música que me fez lembrar, quando compunha o tema, uma música dos Yo La Tengo, do álbum Fade. E decidi, logo aí, baptizá-la Yo La Tengo, para além de ser uma espécie de homenagem a uma banda de que gosto muito”. 

“Yo La Tengo” foi o tema de avanço de Sem Palavras, Cem Palavras e já conta com um belo videoclipe, filmado por Vasco Mendes. Os travellings e as panorâmicas a fazerem lembrar um vídeo a 360 graus transportam-nos para os antigos terrenos da Lisnave, tendo o Tejo como fundo. De alguma forma, há algo neste álbum que me remete para o conceito de maresia. Basta prestarmos atenção ao sintetizador que se prolonga e se arrasta em “Mar Adentro”, juntando-se a uma reverberação especial da guitarra. Quase que adivinhamos navios a emergir lá bem ao fundo.

É mais do que justo dizer que há, em Sem Palavras, Cem Palavras, um ecletismo que fala por si só. Há o ecletismo da temática, que nos lembra que a música e a poesia sempre comunicaram entre si; há o ecletismo da bucolidade e da maresia; da fusão das electrónicas, sintetizadores, loops e dos riffs e solos das guitarras. É íntimo, faz-nos entrar num estado de espírito nostálgico e até melancólico na medida certa, como acontece em “Tu Eras Apenas Uma Pequena Folha”. O som surge cristalino, mas também distorcido. Algo que nos ensina que por mais que queiramos categorizar a música e colocá-la em gavetas — o que é legítimo como processo de orientação — temos sempre de ir mais longe porque isso sabe sempre a pouco ou a incompleto. Um poema desperta imagens, pensamentos e sentimentos sem passar por crivos, daí Afonso escrever Sou crente num poema/ como sempre/ Ligação direta ao sentimento/ sem portagens nem empreendimento/ fulminante”. Isto acontece, não só mas também, pela ligação directa que a poesia tem com a sonoridade, com a declamação. Então, o que dizer de uma melodia, uma vez que a audição é o sentido directamente ligado à nossa percepção cerebral quando estamos a dormir? Por isso, Afonso terá sempre os poemas e nós a música, sem esquecer a urgência que nasce em cada um nós.

“E não há dia exacto/ para bebermos, dançarmos, fugirmos/ O amor é uma casa viajante com raízes/ Façamos isso hoje, agora, já …/ Que um poema não espera/ e muito menos/ cem palavras”.

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