Se o blues fosse poesia, o trabalho de Stevie Ray Vaughan seria um dos mais belos poemas

por Lucas Brandão,    10 Abril, 2017
Se o blues fosse poesia, o trabalho de Stevie Ray Vaughan seria um dos mais belos poemas
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Stevie Ray Vaughan é comumente esquecido quando se alude aos grandes nomes dos blues, principalmente no que abrange os anos 80. Sendo um dos principais responsáveis pela revitalização deste género musical, o guitarrista deu azo a que a expressão deste género musical se tornasse mais eletrizada e estalada. Mesmo sem prescindir das raízes identitárias dos blues, Vaughan colocou voracidade e sentimento numa voz rouca e pesada, para além de conferir à guitarra a autonomia que os alquímicos da música conseguem criar. Com isto, tomou referências norte-americanas e inglesas, tanto do lado dos próprios blues como do rock elétrico que se foi proporcionando e deslumbrando muitos. Baseando-se no sucesso dos Led Zeppelin, de B.B. King, dos Cream de Eric Clapton, e de Jimi Hendrix, o norte-americano deu qualidade a uma carreira que, apesar de pecar na quantidade, se exprimiu com gracejo e benfazejo.

Stephen Ray Vaughan nasceu a 3 de outubro de 1954, na cidade de Dallas, no estado norte-americano do Texas. As suas raízes geográficas tornaram-se incólumes naquilo que seria o seu crescimento pessoal e profissional. No entanto, a sua infância foi tudo menos pacífica. A família, constituída pelos pais e pelo futuro músico Jimmie Vaughan, foi-se mudando de estado para estado, fixando-se na cidade de Dallas. O seu pai sofria de alcoolismo, e não foi rara a ocasião na qual os restantes membros foram vítimas das suas descargas verbais e físicas. Foi na música que encontrou o seu tubo de escape, inspirando-se naquilo que o seu irmão vinha tocando. Experimentando bateria e saxofone, foi com a guitarra que se maravilhou, tendo recebida a primeira com sete anos. Tudo o que aprendeu foi ao ouvido, escutando atentamente Otis Rush, Muddy Waters, Albert King, Jimi Hendrix e Kenny Burrell. Com 11 anos, comprou uma guitarra elétrica, com a qual fez parte da banda Chantones. Com esta, fez parte de um concurso de talentos, mas rapidamente se mudou para Brooklyn Underground, grupo que atuava em bares locais. Antes do seu irmão sair de casa, aos dezassete anos, este ofereceu-lhe a sua guitarra Fender Broadcaster, que Stevie trocou por uma Epiphone Riviera. Sem o apoio dos pais, e fixado na sua carreira profissional, tentou ganhar alguns rendimentos em empregos precários, até se atirar na totalidade à produção musical.

Corria o ano de 1969, e Vaughan já era membro de uma nova banda, de seu nome Southern Distributor. Para desta fazer parte, tocou na audição “Jeff’s Boogie”, dos ingleses The Yardbirds. Com somente 15 anos, ia importando várias ideias e músicas de blues para o repertório do grupo, acabando este por se desmembrar após não vislumbrarem potencial para serem autónomos financeiramente. Atuando em vários clubes da sua cidade-natal, vários foram aqueles que travaram conhecimento com ele, e que o convidaram inclusive a juntar-se a novos projetos, tais como os Krackerjack e os Liberation. Neste, o guitarrista Scott Phares ofereceu-se para passar a baixista, trocando com o virtuosismo e a perícia do texano. Nos anos 70, foram sensação no Adolphus Hotel, em pleno centro de Dallas, sendo uma presença solicitada pela banda ZZ Top. Vaughan chegou a colaborar com estes, em especial na música “Thunderbird”. Foram várias as críticas favoráveis, mas também o trajeto regressivo nos estudos, acabando por se desleixar e nem sequer conseguir ingressar na universidade.

As primeiras gravações que contaram com os préstimos do guitarrista foram a de duas músicas da banda Cast of Thousands, sendo elas “Red, White and Blue” e “I Heard a Voice Last Night”. Sentindo os seus prazeres pelo rock e pelos blues constrangidos, criou o seu próprio projeto, de seu nome Blackbird. Com ele, partiu para Austin, capital do estado do Texas, e atuou em várias aberturas de concertos das redondezas, tal como o dos Sugarloaf. Em 1973, integrou os Nightcrawlers, que contava com o guitarrista Marc Benno e o vocalista Doyle Bramhall, e gravou com eles um disco, que acabaria por ser rejeitado pela A&M Records. Este trabalho foi, por sua vez, importante, visto que Stevie escreveu as suas primeiras letras. O grupo viria a assinar um contrato com o manager Bill Ham, que os pôs a atuar em vários lugares do sul. No entanto, estas atuações seriam um falhanço, e rapidamente a parceria cessou. Mais uma série de colaborações se seguiu, entre elas os The Cobras, que lhe proporcionou partilhar o palco com Buddy Guy, Lightnin’ Hopkins e Albert King, e gravar os singles “Other Days” e “Texas Clover”, mas que não lhe satisfaziam plenamente nas perspetivas futuras.

Tudo mudou quando W.C. Clark saiu do grupo Triple Threat Revue. Tudo findaria no trio composto por Stevie Ray Vaughan, pelo baterista Chris Layton, e pelo baixista Tommy Shannon, os dois eventualmente recrutados e o nome mudou para Double Trouble, a partir de uma música de Otis Rush. Foi durante este ano de 1978 que Vaughan conheceu a sua namorada e futura única esposa, Lenora Bailey. “Lenny” seria a sua companheira matrimonial por seis anos e meio. Os músicos atuavam regularmente no Rome Inn, visitado pelo contabilista Edi Johnson e pelo gestor musical Chesley Millikin, que quis orientar a sua carreira. No final de 1979, este tornou-se no seu manager, isto para além do organizador de concertos e de tournées Robert Brandenburg, que apelidou Steve de “Stevie Ray”. Daí em diante, Vaughan passou a usar o seu nome do meio, firmando-se como Stevie Ray Vaughan. Shannon sucedeu Jackie Newhouse, e oficializou o grupo que lançaria o texano na ribalta.

Apesar de fazerem sensação no Texas, faltava algo para que eles se projetassem a nível nacional. Durante uma fase, e por se ver culpado do abuso de substâncias ilícitas, foi impedido de sair deste estado norte-americano, restringindo-se a essa esfera geográfica o seu trabalho. Uma recomendação ao organizador do Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, foi providencial para que se mostrassem a um público amplo e vasto. Assim, o dia 17 de julho de 1982 seria responsável por uma mudança abrupta e desmedida no seu reconhecimento. Entre as faixas apresentadas, ouviram-se as originais “Pride and Joy” e “Love Struck Baby”, e covers de Freddie King (“Hide Away”), e de Larry Davis (“Texas Flood”). Porém, a receção imediata da audiência seria mista, acabando a banda por receber vários apupos no final. Apesar desse revés, muitos foram aqueles que queriam tomar conhecimento de quem Stevie era. A noite seguinte contaria com a banda a atuar no Montreux Casino com Jackson Browne, com quem viriam a gravar no estúdio pessoal deste, em Los Angeles. Entretanto, o texano recebeu um telefone de David Bowie, que o havia conhecido em Montreux, e com quem queria gravar algumas das canções do seu álbum “Let’s Dance”. A música homónima do álbum, assim como “China Girl”, contariam com o apoio instrumental de Vaughan, assim como quatro outras músicas do trabalho de Bowie. O sucesso deste foi retumbante, e, rapidamente, houve editoras que entraram em contacto com o músico e os seus dois companheiros dos Double Trouble.

Um videoclip de “Love Struck Baby” foi lançado, e Vaughan estava para seguir viagem com Bowie, atuando com este na Serious Moonlight Tour. No entanto, questões negociais encontraram impasses, para além da manifestação de vícios por parte do guitarrista, em especial por cocaína. Também isto iria ser título de várias notícias, correndo o país, e até conseguindo um convite para antecipar o concerto de Bryan Adams no The Bottom Line, em Nova Iorque. Várias eram as celebridades que estavam na audiência, tais como Mick Jagger ou o tenista John McEnroe, e foram muitos os elogios à atuação da banda.

Os álbuns começaram aí a dar amostras da sua existência, agregando o trio material suficiente para a composição e lançamento de “Texas Flood”. Para além de originais, este álbum de 1983 contém covers de ilustres artistas, como Howlin’ Wolf ou Buddy Guy. A particularidade da faixa “Lenny”, composta por Stevie na cama, é desta ser dedicada à sua esposa. Meio milhão de cópias foram vendidas, trabalho este que contou com a produção da capa por Brad Holland. A receção foi francamente positiva, tornando-se até relevada por famosos músicos e membros do panorama da música. Seguiu-se “Couldn’t Stand the Weather” (1984), que contou com covers a músicas de Bob Geddins (“Tin Pan Alley”), de Guitar Slim (“The Things That I Used to Do”), e de Jimi Hendrix (a célebre “Voodoo Child”). Neste álbum, Vaughan convidou diversos outros músicos para as gravações, provendo a este trabalho de mais versatilidade e de uma experimentação que suscitou o jazz (“Stang’s Swang”). No cômputo geral, o trabalho instrumental do texano segue uma consistência rítmica elevada, apesar de vários improvisos e de procurar envolver o R&B e o soul na produção musical. Segundo os próprios críticos, também a capacidade vocal de Vaughan conheceu um importante impulso, melhorando a ouvidos abertos e a olhos vistos.

O sucesso começava a ser uma recorrente na carreira do músico, atuando a solo – embora, na segunda parte do concerto, contasse com nomes como o seu irmão Jimmie, o baterista George Rains, o teclista Dr. John, e a vocalista Angela Strehli – em pleno Carnegie Hall, palco conceituado de Nova Iorque. Este evento, que decorreu em outubro de 1984, e os fundos que agregou foram revertidos para a T.J. Martell Foundation, instituição de apoio à investigação clínica e do combate à leucemia. Um concerto que trouxe grande parte dos originais até então gravados para a primeira parte, e que os complementou com covers de vários nomes conceituados dos blues na segunda, como Albert King, Buddy Guy, Albert Collins, e Jackie Wilson. Muitas foram as opiniões favoráveis quanto ao concerto, reforçando a identidade nacional recém-adquirida. Desde então, também os outros continentes passaram a conhecer e a testemunhar os talentos dos Double Trouble, entre eles a Ásia – em Osaka, Japão, e a Oceânia – uma tournée na Austrália e Nova Zelândia. No entanto, o trabalho de estúdio rapidamente voltou a ser feito, e “Soul to Soul” foi lançado em 1985. Nesse ano, voltaria também a Montreux, onde conquistou a plateia de forma unânime, e rebatendo as dúvidas que pairavam da edição que decorreu três anos antes.

Contudo, este não seria um trabalho de desenvolvimento fácil. Stevie sentia-se frustrado pela alegada falta de inspiração, e deixou-se levar pelo engodo do álcool e das drogas, que o tornaram menos disciplinado e dedicado. No entanto, isso não o impediria de achar que a banda carecia de sangue novo, para além de uma nova dimensão musical, e contratou o teclista Reese Wynans. Nesse período, porém, Vaughan chegou a tocar o hino norte-americano em pleno Houston Astrodome, sendo acolhido com vaias. Quanto ao álbum em concreto, lançado no final de setembro, a mescla de blues e de rock permaneceu patente, mostrando também sinais de uma crise ultrapassada, e de uma coesão crescente. Individualmente, o trabalho não teria grandes êxitos, embora se mostre como algo sólido e que não compromete com as estruturas usuais da banda.

Depois de nove meses nos palcos, novo disco foi solicitado pelo contrato que haviam assinado com a Epic, e, em novembro de 1986, “Live Alive” compilou três concertos no estado-natal de Vaughan, no Texas. Contudo, vários foram aqueles que visualizaram condutas profissionais desregradas naquilo que foram as músicas gravadas, e tudo se tornou pior com a envolvência crescente dos membros com drogas. As considerações tecidas por esses mesmos foram também assumidas por outros, que classificaram o álbum como um trabalho atabalhoado e descoordenado. Os vícios apoderaram-se de Stevie, que já havia travado contacto com o álcool bem cedo na sua infância, quando roubava as garrafas do seu pai. Eram várias as drogas que constavam no cardápio diário do músico, como cannabis, cocaína e metanfetamina; assim como o velho álcool. O próprio Muddy Waters, estrela dos blues, reconheceu o génio musical do texano, embora duvidasse que este chegasse aos 40 anos com essa conduta. Essa espiral regressiva chegou a levá-lo ao tribunal em 1980, e a forçá-lo a um tratamento de reabilitação, depois de estar às portas da morte num concerto na Alemanha, isto no ano de 1986. Após passar uma semana em Londres, foi movido para um hospital de Atlanta, onde esteve internado durante um mês.

No regresso, que contou também com o retorno da reabilitação por parte de Tommy Shannon, os ensaios começaram para uma nova tournée. Os nervos dominavam Vaughan, que receava voltar a deslumbrar-se e a perder-se num comportamento alienado e desresponsabilizado. Porém, 1987 começaria com o seu divórcio de Lenny, que se viria a arrastar por durante dois anos e que se tornaria num impeditivo para a sua produção musical. No entanto, a banda criaria “Crossfire” no entretanto, sendo lançada e promovida no álbum “In Step” (1989), este que seria o último projeto discografado do grupo. Apesar dessas peripécias, os concertos permaneceram marcados, e grande parte foi dada, incluindo aquela que seria a última digressão europeia de Stevie Ray. Quanto ao álbum supramencionado, foi gravado em Memphis, e representou a maturidade consolidada da banda como núcleo musical, suportada por uma base mental mais estável e equilibrada. A própria designação deste disco está de acordo com esta sintonia pessoal e profissional do texano. O álbum trouxe, também, uma cover da música “Love Me Darlin’”, da conceituada lenda dos blues Howlin’ Wolf; para além da suave e prolongada “Riviera Paradise”, solo de extremo virtuosismo. A própria composição musical tornou-se mais apetecível e degustável, elaborando-se em alegorias interessantes e entusiasmantes. O sucesso coroar-se-ia com uma atuação da festa presidencial inaugural de George W. Bush Sr.

Contudo, e numa fase em que Stevie Ray Vaughan se encontrava na plenitude das suas capacidades musicais e pessoais, o dia 27 de agosto de 1990 tornar-se-ia fatal para o músico. Em condições atmosféricas bastante impróprias para uma viagem de helicóptero num pós-concerto, no qual colaborou com Eric Clapton e alguns outros da confiança deste, o guitarrista viria a embater numa colina, e decretaria morte instantânea a todos os tripulantes. Ao seu funeral, vários nomes de relevo da música e ex-colaboradores musicais de Stevie compareceram, como ZZ Top, Buddy Guy e David Bowie. Nomes importantes do rock, dos blues e do jazz, influentes naquilo que seria a formação da sua identidade artística, assim como guitarristas ligadas a este último, como Django Reinhardt, George Benson e Wes Montgomery. No entanto, parte da sua técnica trémula e vibrante é devida a Lonnie Mack, nome forte do panorama guitarrístico, que também beneficiou Jeff Beck. “The Sky Is Crying” (1991) celebraria o legado deixado por Vaughan, e que não havia chegado ao público, de forma póstuma e perpétua.

Stevie Ray Vaughan foi um dos grandes nomes dos blues, mesmo que se localize na sombra de outros mais reputados e conceituados internacionalmente. Nem isso impede o mediatismo galopante e que ainda se sente em terras nacionais e estaduais. Influenciando figuras, como John Mayer ou Gary Clark Jr., o seu campo eletromagnético tornou-se célebre nas mais vibrantes e gritantes ondas sonoras, tanto provindas das suas guitarras como da sua voz. Várias foram as honras que foi recebendo, tais como um feriado no Texas, uma estátua na capital deste – Austin – , concertos de beneficência em favor do tratamento do alcoolismo e da toxicodependência, e uma bolsa de estudo. Iniciativas que representam o apreço e o valor de um artista que se valeu por mais do pela própria música, mas, em grande parte, também por valorizar a música das entranhas norte-americanas, influenciada pelos grandes nomes e pelas majestosas guitarradas. Dos blues um dilema, que remete a vida e obra de Stevie como um bendito e sentido poema.

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