“Say No! More”: a sindicalização do não

por João Diogo Nunes,    26 Abril, 2021
“Say No! More”: a sindicalização do não
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Segundo o dicionário Merriam-Webster, em 1912 usava-se pela primeira vez o termo yes-man, que define uma pessoa que “concorda com tudo o que é dito”, especialmente “qualquer opinião ou proposta de um associado ou superior”. Em 2021, cunha-se a ideia oposta em Say No! More, o mais recente jogo dos alemães da Studio Fizbin, os mesmos que estão a trabalhar nos vindouros Minute of Islands e Lost At Sea.

O Treinador do Não é muito mais que um tutorial e encena alguns dos momentos mais preciosos do jogo

O humor alemão é, por norma, bem característico. Nos videojogos foi consagrado no género point-and-click, como no excêntrico Deponia ou no astuto The Book of Unwritten Tales. Aqui, ele ganha contornos diferenciados, mas ainda se mantém nas linhas da exploração do absurdo e dos jogos de palavras. Quando começamos o jogo temos duas decisões a fazer: escolher qual a personagem a usar e decidir em qual das 17 línguas disponíveis vamos dizer não, algo que vai acontecer cerca de um milhar de vezes durante a duração do jogo. Mas não se enganem, o jogo não é sobre dizer não a tudo e a mais alguma coisa, é sobre dizê-lo mais vezes e nas vezes certas, dizê-lo bem, dizê-lo do fundo do coração, dizê-lo para o nosso bem e para o bem dos outros. Say No! More é, nessa tentativa de nos empoderar, de catalisar a nossa “energia do não”, um sucesso. Para além disso, o jogo sabe quebrar as expetativas, o que refresca a narrativa e dá azo a um final bastante interessante e capaz de transmitir a mensagem diretamente.

Se não quisermos usar um dos 16 modelos predefinidos podemos criar o nosso

Sendo totalmente on-rails, ou seja, a movimentação é feita automaticamente, só resta ao jogador dizer não. Essa é a mecânica principal e as outras ações apenas a tornam mais variada. O jogo não procura ser desafiante nem exigir grande destreza, trata-se de uma experiência quase exclusivamente narrativa, sendo até possível completá-la esperando de braços cruzados até ter de carregar, lá de vez em quando, na tecla para dizer não. Ao contrário do ritmo menos bom dos diálogos, o ritmo das sequências de ação acerta em cheio à medida que vamos encontrando colegas de trabalho pelo caminho que nos fazem pedidos como fazer café ou fotocopiar papéis. Há um tempo limite para agir, só que não responder a tempo não tem consequências e o jogo prossegue na mesma (há raras exceções). Teria sido interessante ver bifurcações narrativas conforme o desempenho ou a integração de outro sistema para tornar a jogabilidade mais relevante, o que não afetaria o sentido do jogo. Ainda assim, a jogabilidade alcança o que pretende: fazer o jogador sentir-se empoderado a um ritmo entusiasmante.

Com a progressão desbloqueiam-se novos tipos de não, como o não frio ou o não preguiçoso, mas eles fazem pouca diferença uns dos outros, e o mesmo se pode dizer dos quatro tipos de escárnio usados para recarregar a barra do não forte, que é raramente necessário e vai ser mais usado por puro contentamento do jogador. É, por isso, importante que o jogador tenha imaginação, entre no ritmo e crie o seu próprio “espetáculo do não”, caso contrário vai limitar-se a usar a palavra utilitariamente e a gerar uma experiência de jogo monótona.

Visualmente, Say No! More utiliza um estilo colorido, de estética em vóxel, muito próprio e rudimentar. Com animações pantomímicas de grande exagero, a boa disposição é parte essencial da identidade visual da obra. A simplicidade técnica é um dos atrativos do visual, mas por vezes cai mal quando acontecimentos mais complexos ocorrem uns atrás dos outros.

As prestações vocais, muito exageradas, são meritosas, com destaque para o vilão principal e o carismático Treinador do Não. A banda sonora é incrível, totalmente energética e apropriada e, tal como o jogo em si, vai melhorando progressivamente, sobretudo à medida que o estilo passa do chiptune a algo mais synth wave. Só é pena que algumas vezes se sinta uma certa repetição na música, até porque a banda sonora, quase sempre presente, tem 32 minutos e o jogo tem entre uma hora e meia e duas horas.

No caso do irlandês, língua que não tem não e usa o verbo na negativa, o jogo usa “ní dhéanfaidh mé é” (“não vou fazer isso”)

Os simples menus e controlos funcionam exemplarmente, sendo só de estranhar a utilização dos diferentes tipos de escárnio, que têm uma responsividade algo desajustada. O texto está traduzido para português, porém, curiosamente, os nãos portugueses que podemos escolher estão indicados como português de Portugal enquanto a tradução do jogo todo está em português do Brasil.

É fácil não recomendar o jogo da Studio Fizbin a quem espera uma experiência profunda na jogabilidade, mas é inegável que a sua energia contagiante nos coloca à beira do assento na hora de devastar todos esses colegas mandões com a palavra mágica. Feito com amor e com um grande foco no que pretende, Say No! More é um jogo que muita gente precisa de jogar, seja para libertar energia, para refinar a sua perspetiva na vida social e laboral ou, simplesmente, para dar umas gargalhadas.

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