Salvador Dalí e a viagem pela quarta dimensão

por Lucas Brandão,    26 Dezembro, 2016
Salvador Dalí e a viagem pela quarta dimensão
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Salvador Dalí sempre foi um pintor com fundamentos vários e com uma mente que se diferenciava das demais pelo resultado que isso proporcionava nas suas telas e demais representações. No meio da ebulição de tantas ideias e correntes, surgem a ciência, a psicologia e, dentro desta, a psicanálise. Tomando Sigmund Freud e todos os seus postulados como premissas-chave da pintura surrealista, valorizou muito o sonho e toda a transcendência simbólica que este transporta em si.

Nesta tendência de ir além do materializado, o espanhol redigiu no seu Manifesto Anti-Matéria, em 1958, que desejava criar a iconografia do mundo interior e do mundo fantástico. Para o conseguir, confiou também na tutela indireta de Werner Heisenberg, um dos principais pioneiros da física quântica. Foi desta forma analítica e quase alquímica que Dalí ousou enfrentar os cânones dimensionais dos planos e das figuras. A obra que conseguiu captar este intento foi realizado quatro anos antes e designa-se de Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954).

O espanhol, como curioso pela ciência nuclear e pelo seu misticismo, redigiu um manifesto em 1951 de nome Manifesto Místico, no qual deixou patente a sua intenção de criar um misticismo nuclear que fundisse a matemática, a ciência, o catolicismo e a cultura catalã que reestabelecesse valores e práticas clássicas no campo das artes e que se redescobrisse na metafísica. Desta renovação surrealista de Dalí e como meio de dar fisionomia a este tão seu campo teórico, o pintor criou o supracitado trabalho.

Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954), de Salvador Dalí

Este quadro reproduz uma cruz levitada e com os padrões geométricos de um hipercubo de quatro dimensões, i.e. um tesserato, neste caso em forma de rede nas proporções do crucifixo. Esta figura alinha assim as diferentes configurações dimensionais e é um composto de 8 cubos desdobrados que visa apontar a transcendência da figura religiosa. Isto consuma-se no espaço envolvente e constituinte do crucifixo e do corpo, questionando e pondo à prova conceitos tanto da física mais tradicional como da mais desenvolvida. Interessa também ressalvar que a esposa do pintor, Gala, fez de modelo para a pose e formatura do pintado Jesus Cristo. A pose é a que se tornou comumente explorada e expressa em obras anteriores mas apresenta a particularidade de não ter unhas e a coroa de espinhos, para além de ter a cara totalmente voltada para fora do olho de quem observa a obra. Este detalhe, para além da feitura da cruz não ser de madeira, coloca a tónica na tal transcendência possibilitada pela invisibilidade, estando numa dimensão inacessível ao olho humano.

A religião e a ciência acabam intersetadas neste trabalho de Salvador Dalí, permitindo ao artista cruzar as perspetivas a partir das cruzes que se sobrepõem no plano das dimensões neste quadro. Esta sobreposição ajuda também a concretizar a tentativa de chegar à quarta dimensão através do crucifixo, possibilitando à imaginação chegar à efetivação do cubo em quatro dimensões e de dar clareza àquilo que se pode entender como “escultura da mente”. A metafísica vê-se meditada e geometrizada através de todo o rigor físico e figurativo que Dalí imprime no seu cardápio na tela. Ao mesmo tempo, o contexto bíblico acaba por ser entoado como algo definitivamente além daquilo que é o universo físico mas que existe a partir da quarta dimensão, notação já estudada por vários cientistas. Os limites do crucifixo permitiam ao espanhol idealizar extensões nunca antes navegadas pela ciência e pela religião no sentido da descoberta daquilo que era e é ainda incógnito ao ser humano.

As dimensões geométricas da cruz criada por Salvador Dalí

Algumas das influências deste trabalho remontam a místicos medievais, tais como o filósofo Ramon Llull, e a arquitetos do século XVI, como Juan de Herrera. No primeiro caso, o autor de Ars Magna possibilitou combinações até então inauditas de elementos filosóficos e religiosos, dando uma base pioneira quanto aos pilares do conhecimento tangível e intangível e mergulhando nas primeiras duas dimensões físicas. Já no que diz respeito ao segundo, o arquiteto do palácio de El Escorial e escritor do Tratado sobre a Forma Cúbica foi o precursor de uma corrente arquitetónica nacional em que a harmonia geométrica dos seus edifícios e a amplitude que conquistava a partir deste preceito deu luzes para os seus sucessores. Assim, Salvador Dalí importou as abordagens conceptuais de Llull e as articulações dimensionais de Herrera, dois compatriotas seus, para com eles viajar mais além no cômputo da transcendência espacial e pictórica. Para além destes, também astrónomos desenvolveram alguns rascunhos sobre as proporções que um hipercubo poderia adotar na sua formulação imaginada e realizada, ajudando à tradução colorida e desenhada daquilo que Dalí pretendia.

No entanto, esta exploração da transdimensionalidade chegou também a outros artistas, entre eles o húngaro Charles Tamkó Sirató e o espanhol Pablo Picasso. O primeiro deu palavras àquilo que a evolução artística havia promovido, redigindo no seu Manifesto Dimensionista (1936) sobre a superação da literatura, da pintura e da escultura das suas plataformas usuais e chegando a um além que se encontra por desvendar a partir dos canais artísticos. Já Picasso, como rosto do movimento cubista, sempre se interessou pelas questões formais e informais da geometria, desdobrando-se nos estudos de teorias de matemáticos do século XIX, tais como os franceses Henri Poincaré e as suas conjeturas matemáticas e físicas e Esprit Jouffret e o seu estudo dos hipercubos e de demais poliedros de elevada complexidade. Como tentativa de explorar pictoricamente todas estas abordagens, o espanhol desenvolveu o Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler (1910), quadro que abrange estas questões e mais algumas na desconstrução geométrica e na procura transcendental da arte noutras dimensões.

Portrait of Daniel-Henry Kahnweiler

Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler (1910), do pintor espanhol Pablo Picasso

Foi este o legado deixado por Salvador Dalí no sentido de perspetivar e de alcançar a quarta dimensão, não só para futuros artistas mas também para visionários e virtuosos cientistas ligados à física e à astronomia. A representação do tesserato desdobrado a partir do crucifixo permite não só a configuração imagética daquilo que será a transdimensionalidade mas também a reivindicação de um fundamento sustentável para a religião e para a metafísica. Esta viagem empreendida por Dalí expõe também todo o seu apreço pelo engenho dos cientistas, dos quais admirava a possibilidade concedida por eles de ir mais além e de arrecadar também a imortalidade da alma. Uma realidade que, por mais surreal que aparente, se cruza de forma indiscutível com tudo aquilo que outros olhos e outras mentes visualizaram como independentes e imanentes. O espanhol foi assim um dos bem-sucedidos pelos caminhos paradisíacos mas invisíveis da quarta dimensão, promovendo a discussão teórica e a superação prática de todos os interessados por algo mais, algo além que deixou de estar aquém.

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