Rita Maia e Vasco Viana fizeram um filme sobre “uma Lisboa que não aparece no New York Times”

por Daniel Dias,    2 Dezembro, 2019
Rita Maia e Vasco Viana fizeram um filme sobre “uma Lisboa que não aparece no New York Times”
“Batida de Lisboa”: Rita Maia e Vasco Viana (2019).
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DJ Nigga Fox passeia pelas ruas iluminadas de Londres rumo ao Camden Assembly. É no pub que, com os amigos DJ Marfox e DJ Firmeza, vai organizar mais uma noite africana, já uma das principais atracções para a jovem clientela habitual. Os ritmos dos músicos, todos com lançamentos através da editora Príncipe, são contagiantes, e cada um dança na pista improvisada do bar à sua maneira. Com um grande sorriso estampado na cara, DJ Marfox diz que Londres (e não só) gosta da “nossa Lisboa”.

Essa Lisboa é a Lisboa da periferia, que não faz parte das rotas turísticas nem das recomendações do TripAdvisor. É a Lisboa da Quinta do Mocho, da Quinta da Lage, do Bairro da Jamaica e do Bairro 6 de Maio – que não é menos Lisboa que a Lisboa de Cascais ou do Parque das Nações. É, por outras palavras, “uma Lisboa que não aparece no New York Times”.

Quem o diz é Rita Maia. A radialista e DJ assina com Vasco Viana a realização de Batida de Lisboa, o documentário que traz até à tela de cinema os sons e o quotidiano dos subúrbios da capital.

“Lisboa tem três milhões de pessoas e só 500 mil é que vivem no centro da cidade”, conta-nos Rita Maia, por telefone. Ainda assim, “é no centro que está tudo concentrado em termos das estruturas para a música”. Batida de Lisboa mostra algumas das “barreiras invisíveis” que os artistas da periferia “têm de ultrapassar para aceder a essas estruturas”, assim como dá conta do “contexto de comunidade fechada” em que a sua música é criada.

Nesta Lisboa periférica, tão Lisboa como a Lisboa dos postais e das fotografias de Instagram, “encontram-se diferentes gerações e origens”, “representadas por antigos músicos e jovens produtores”. Sobrevive, nos vários bairros, uma herança cultural que provém de países como Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau ou São Tomé e Príncipe, e géneros como o rap crioulo ou o afrohouse dialogam com o funaná e o “batuque” tradicional. A música, considera Rita Maia, “funciona num sentido de afirmação de identidade”, serve como arma para denunciar a discriminação e o estigma, e é vista como um possível veículo para a mudança.

Os músicos, desde Vado Más Ki Ás a DJ Nervoso ou DJ Famifox, mostram à câmara de Rita Maia os cantinhos preferidos dos seus bairros, e Rita Maia mostra ao espectador as interacções que as crianças têm com eles e a maneira como os admiram. Os rappers e produtores através dos quais a história de Batida de Lisboa é contada são, garante a realizadora, “vozes da comunidade”, “tão importantes como as que estão no Parlamento ou noutros lugares de poder”. Os artistas abraçam a “responsabilidade de se assumirem como role models”, algo que Rita Maia aplaude, porque “são profundamente necessários” e “há muito poucos em alguns sítios”. Há, no fundo, poucas “imagens de esperança para o futuro” em locais onde são urgentes.

O desejo que estes músicos têm de “serem reconhecidos no sítio onde cresceram e fazerem parte da cultura local” é manifestado durante o documentário, e torna-se particularmente forte numa cidade que, sublinha Rita Maia, “ainda está a reconhecer estes géneros musicais” que passam por Batida de Lisboa como seus. “Alguns artistas já tocam no centro”, principalmente em espaços como o Musicbox, mas “são muitos anos a tentar”, e, avança a radialista, “é precisa a ajuda de pessoas que já têm esses acessos” para que isso aconteça.

Os sons do bairro começam, aos poucos, a chegar ao centro da capital, não deixando de ser curioso reparar que demoraram menos tempo a chegar lá fora. Basta olhar para as imagens iniciais de Batida de Lisboa, que registam a euforia vivida no Camden Assembly, ou ouvir a maneira como DJ Marfox fala de cidades como Paris, Marselha ou Nice – onde “éramos os patrões” e “as pessoas gritavam os nossos nomes”. A conversa com Rita Maia por telefone dura pouco mais de 20 minutos, tempo insuficiente para enumerar todos os motivos pelos quais o centro só agora começa a abrir as portas. Mas tempo suficiente para ficar com a certeza: em contextos delicados, “há um sentimento grande de entreajuda e sobrevivência” que mantém uma comunidade unida. A música reflecte isso mesmo: ela “junta pessoas”, e “o contacto entre as pessoas é o início de tudo”.

Batida de Lisboa fez parte do ciclo Transmission da sexta edição do Porto/Post/Doc. O documentário foi exibido a 28 de Novembro no gnration, em Braga, e a 29 de Novembro no Cinema Passos Manuel.

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