Resistam à estupidez

por Gustavo Carona,    17 Setembro, 2020
Resistam à estupidez
Gustavo Carona / DR
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O querer acreditar é a maior força do ser humano. Quando a vontade é muita, somos capazes de acreditar nas coisas mais estúpidas e inverosímeis. E neste momento estamos a transbordar de vontade em acreditar em algo que nos livre deste pesadelo. Roubaram-nos demasiados bens adquiridos, e ninguém gosta de ser roubado. Há os que querem acreditar porque são empresários desesperados, há os que não sabem viver sem festas, há os que estão a morrer de saudades dos abraços que lhes fazem falta e os que simplesmente estão tristes e querem voltar ao tempo em que havia mais sorrisos, e sorrisos ao descoberto das máscaras que invadiram a nossa vida. Mas há que resistir. Resistam. Resistam à tentação de querer saber mais que a ciência. Estão a pôr em risco a vossa vida, dos vossos e de todos nós. É perigoso não resistir à vontade de acreditar em parvoíces. E como a desinformação se espalha mais forte e mais rapidamente que o vento, não é fácil ter tempo para desconstruir todas as baboseiras que se dizem por aí.

1) A ciência aos cientistas. Eu não imagino que alguém se levante do seu lugar num avião a passar por uma tempestade e tente tirar os pilotos do cockpit: “Sai daí! Eu é que sei aterrar este AirBus 380 no meio desta tempestade”. É isto que estamos a presenciar. Doutorados em patetices a dizer que sabem mais que toda a comunidade científica. Olham para os números e tiram “conclusões”. E neste grupo estão também médicos (poucos felizmente) que perigosamente por saberem qualquer coisinha sobre ciência esquecem-se que a sua ignorância é muito maior do que o pouco que sabem. A ciência tem auto-regulação. Aceita o contraditório. Tem avanços e recuos, comete erros, mas aprende e evolui, e será sempre o mais perto da verdade que vamos estar.

2) “Morrem mais pessoas de cancro!”. Sem dúvida e mais ainda de doenças cardio-vasculares. A mortalidade por doenças não-Covid sem dúvida que subiu pelos danos colaterais do controlo da pandemia. Mas esta é uma forma simplista de olhar para um problema extremamente complexo. A pergunta que tem que ser feita é: quantas mais morreriam de causas não-Covid se a pandemia estivesse descontrolada? Há uma tentativa de conspirar a favor de forças obscuras que alimentam a teoria que os serviços de saúde só pensam nos doentes Covid. Isto não é verdade! À semelhança de uma guerra (e eu detesto esta comparação) as pessoas morrem mais por falta de cuidados de saúde do que por tiros e bombas, mas enquanto houver tiros e bombas não haverá cuidados de saúde, e por isso quem os mata em ambas as situações é a guerra, é a pandemia.

3) Dinheiro e Felicidade. Tendo em conta a forma como eu vejo a vida, desde o primeiro dia que considerei que a nossa saúde mental e felicidade e a catástrofe social dos que ficaram sem casa e sem alimentar aos seus filhos, tem que ser contra-balançado com as consequências de saúde pública sejam elas Covid ou Não-Covid. Mas o que está em causa e certamente matéria de grande debate onde eu tenho muitas mais perguntas do que respostas, é que o sofrimento colectivo que estamos a passar e a quebra da economia poderiam eventualmente ser maiores se fingíssemos que o vírus é apenas mais um e nos deparássemos com hospitais a transbordar de mortos. O pânico e o medo que daí também viria seria certamente pior do que o que estamos a viver neste momento.

4) Avante, Fátima, Futebol e Discotecas. Grandes ajuntamentos de pessoas ao ar livre com uma dispersão razoável e mais ainda se usarem máscaras parece não oferecer grande risco de contágio. Daí que a gritaria contra e a favor, políticas e religiões a propósito de grandes aglomerados, ainda que na minha opinião possam ser anti-pedagógicos, parecem ser menos perigosos do que um jantar com 10 pessoas em casa com amigos ou familiares. Eu adoro futebol e adoro sair à noite, e talvez por saber o que por lá se passa sou obrigado a compreender a proibição de público e de álcool, porque os comportamentos rapidamente transcendem o razoável em ambas as situações. As escolhas são dificílimas, e as comparações principalmente para quem lhes dói no bolso são infinitas, mas vamos mesmo ter que acreditar que quem decide está a fazer o seu melhor perante um desafio épico.

5) Numerologistas. Parece que basta ir 2 vezes ao site da DGS para nos tornarmos especialistas em números. Mas primeiro é preciso saber muito para se saber ler os números, e mesmo para quem sabe muito há muita coisa que os números não dizem: A solidão em que as pessoas morrem que é quase tortura, a gestão da culpa dos que infectaram os seus familiares e que os levou à morte, a absorção brutal de recursos humanos que esta doença consome, e o labirinto logístico que é gerir um hospital cheio de Covids e com tudo o resto. É mais difícil do que possam imaginar.

Vamos viver um período de histeria colectiva e muitos terão razão, o que é o mesmo que dizer que será dificílimo democratizar o que é melhor para todos. E por isso, peço-vos encarecidamente, que não alimentem as campanhas de desinformação, conspiração e negação, porque estas são perigosíssimas a põe a vida das pessoas que mais gostamos em risco. E ver gente a morrer, não é bonito. Acreditem.

Há milhões de pessoas a quem a ciência não chega e morrem infinitamente mais do que nós que nascemos rodeados de um mundo de saberes que salvam vidas. Não os neguem, simplesmente aproveitem-nos e não tentem ter uma opinião sobre como pilotar o avião no meio de uma tempestade.

Há muita vontade em acreditar na estupidez. Resistam.

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