Resgatar o colectivo

por Sara Rathenau,    13 Novembro, 2020
Resgatar o colectivo
Fotografia de Marco Carreira
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Só existo porque tu existes.
É daqui que nasce o Eu,
E é também daqui que nasce o Nós.
O Singular e o Colectivo são filhos da mesma mãe.

No livro “Do desaparecimento dos rituais”, Byung-Chul Han (2019) diz-nos que os rituais são actos simbólicos, que transmitem e representam os valores que tornam coesa uma comunidade. São precisamente aquilo que nos permite reconhecer. Reconhecer-nos no outro e o outro reconhecer-se em nós. Geram uma comunidade sem ser necessário a comunicação, enquanto que o que existe, hoje, é uma comunicação sem comunidade. Somos a sociedade digital, do consumo, com sobreinformação, mas talvez com menos conhecimento. Somos experts, doutores e conhecedores. Recebemos informação a cada segundo, todavia somos naturalmente incapazes de a filtrar. Caminhamos na estrada da hiperactividade, do movimento, do não parar e do não silêncio.

Hans-Georg Gadamer (1977) em “La Actualidad de lo Bello” diz-nos que re-conhecer captura o permanente no fugaz. Podemos olhar para o simbólico como aquilo que contém sentimento. Sendo nós a sociedade digital, falta-nos o simbólico, pois os dados e a informação carecem de força simbólica. Só através do simbólico é possível reconhecimento. Os rituais transformam precisamente o “estar-no-mundo” num “estar-em-casa” (Byung-Chul Han, 2019). Contudo, para habitar uma casa é preciso tempo pois tudo aquilo que foge e que é fugaz não é habitável. E é precisamente aqui que os rituais desempenham uma imprescindível função, visto que são antónimos do rápido e do impermanente. Os rituais são como polos estabilizadores da vida, concebem estrutura. Uma casa sem estrutura não é casa. Estar, passar tempo com, pressupõe coisas com duração. Contudo, se as coisas são apenas usadas e consumidas, não é possível passar tempo com elas. Hoje consumimos não só as coisas, mas também as emoções de que estão carregadas (Byung-Chul Han, 2019). Para além disso, os valores são também eles, hoje, objectos de consumo. As emoções e os valores tornam-se mercadorias.

Símbolo, do Grego “symbolon”, termo que pertence ao mesmo campo semântico que relação, totalidade, salvação (Byung-Chul Han, 2019). No mito que Aristófanes relata no diálogo “O Banquete de Platão”, o Homem era originalmente um ser com dois rostos e quatro pernas. Como era demasiado arrogante, Zeus dividiu-o em duas metades para o ferir. A partir daí, o homem é um “symbolon” que procura a sua outra metade, uma totalidade que o cure e que o salve. “Juntar” diz-se em Grego “symbállein” e Byung-Chul (2019) afirma que os rituais são também uma práxis simbólica do “symbállein”, na medida em que juntam os seres humanos e engendram uma aliança, uma totalidade, ou por outras palavras, uma comunidade. Neste caminho cheio de movimento, procuramos encontrar algo que preencha um certo vazio ou inquietação crónica do nosso tempo. Contudo, parece-me que o fazemos de uma forma errada, ao mercantilizar as emoções, os valores e até o Outro. O desaparecimento dos símbolos remete para a crescente atomização da sociedade (Byung-Chul Han, 2019). Sendo o átomo a partícula que se considera o último grau da divisão da matéria, a atomização da sociedade não é mais do que um movimento de individualização, no qual – arriscar-me-ia a dizer – o Nós deixa de existir em prol de um Eu narcísico. A crescente atomização do colectivo afecta também a gestão dos seus sentimentos. Geram-se cada vez menos sentimentos comunitários (Byung-Chul Han, 2019). Desaparece assim o sentimento de pertença e semelhança. Sem os rituais, não existe comunidade. Sem comunidade, não existe casa.

Fechar os olhos é um símbolo de cerramento contemplativo e pode ser visto como um ritual. A enorme afluência de imagens e informação (sociedade digital) torna impossível fechar os olhos. Da mesma forma que onde há infinitas possibilidade de conexão não é possível nenhuma conclusão (Byung-Chul Han, 2019).  A eliminação das formas de cerramento e de conclusão ligadas à sobreprodução e ao sobreconsumo provoca um “enfarte no sistema”. Os rituais de cerramento (como, por exemplo, fechar os olhos) dão estabilidade ao lugar (Quantas vezes fechamos os olhos durante o dia?). O ser-humano é um ser locativo, e, por isso, só o lugar torna possível o habitar e o estar. Mas para isso é necessário que o lugar seja estável, se não é inabitável.

A crescente pressão para o desempenho e produção nem sequer torna possível uma pausa que permita descansar (ou até fechar os olhos). Fazer uma pausa, ter tempo. O tempo é uma espécie de orquestra que nos guia desde a primeira respiração até à última. Se por um lado temos sede de viver cada momento, por outro temos de parar para podermos realmente saciar. É importante parar. A sociedade hiperativa em que vivemos não nos ensina a parar. Não nos ensina que a sede de viver também se sacia e deve ser saciada na pausa, na reflexão, na contemplação e no fechar os olhos. Viver não é só movimento, viver é muitas coisas. Parar é também viver. Por isso muitas pessoas adoecem justamente durante o tempo livre. Esta doença tem já um nome, leisure sickness, onde o tempo livre revela-se aqui uma angustiante forma vazia de trabalho. Byung-Chul (2019) afirma que o repouso activo e ritual cede perante o angustiante não fazer nada. Parar é também um ritual. Por exemplo na criação, o descanso sabático e/ou a interrupção é essencial. Sem a pausa a criação está incompleta.

A sociedade de produção está dominada pelo medo da morte. O capital parece ser uma garantia contra a morte (Byung-Chul Han, 2019). Parece que parar é sinónimo de morrer. Os rituais configuram as transições essenciais da vida, são formas de cerramento. Sem eles, deslizamos de uma fase da vida para a outra sem solução de continuidade (Byung-Chul Han, 2019). São estruturantes do ponto de vista da Saúde Física e Mental (e estas estão inter-ligadas). Não é por acaso que a digestão dos alimentos (que implica tempo) tem a função de manter o suprimento de água, electrólitos e nutrientes do organismo num fluxo contínuo. Para continuar (num fluxo contínuo, para que exista continuidade) é preciso parar. O silêncio pode ser também ele um ritual pois só no silêncio é que se é unido (Byung-Chul Han, 2019). Fugimos todos ao constrangimento e inquietude que o silêncio parece carregar. Não somos capazes de o encarrar, de o viver (da mesma forma que a pausa). O Silêncio também pertence à ordem do ser-se humano e da Saúde. É necessário e imprescindível para se conseguir digerir as emoções e os acontecimentos. Arrisco-me a dizer que aquele que tem, hoje, a ousadia de em algum momento parar só o consegue realmente fazer se estiver de mãos dadas com o silêncio.

É necessário o Nós!
Sem ele, diria que não seremos verdadeiramente capazes de existir.

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