Reis da República: ‘Nunca tinha ponderado um baixo, éramos putos, sabia lá eu da importância dum baixo numa banda’

por Sara Miguel Dias,    25 Setembro, 2018
Reis da República: ‘Nunca tinha ponderado um baixo, éramos putos, sabia lá eu da importância dum baixo numa banda’
Fotografia de Sara Miguel Dias /CCA
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Estamos perante um palco cada vez maior para artistas e vozes nacionais que, independentes ou apoiados, têm fruído de uma visibilidade crescente e de uma audiência cumulativa. O meio é pequeno e muitas vezes as bandas surgem de mão com mão, partilhando músicos e artistas que procuram expressar as suas paixões de formas diferentes e distinguíveis. A mais recente adição à Cuca Monga foram os Reis da República, um grande grupo que é também um grupo grande, e cuja extensão se compreende perfeitamente com a audição da sua música: é complexa e bem constituída, rica em ideias e instrumentos. Mas “Fábulas”, o primeiro álbum de estúdio da banda, não se deixa perder na quimera inferida pelo seu nome, e para compreendermos melhor toda a articulação que levou à génese deste projeto reunimo-nos com Luís Ogando e Bernardo Sotomayor no Largo de São Paulo, que ao fim do dia trocou o histerismo universitário e os bêbados da noite pela enchente turística deste fim de verão lisboeta.

Começando pelo início, vocês são seis, conheceram-se pela banda, já se conheciam antes?
Luís Ogando: Já nos conhecíamos antes. Alias, nós os dois conhecemo-nos e criámos a banda. Depois coisa puxa coisa, “vamos tornar isto um bocadinho mais sério”, chamámos o [Tomás] Lobão para baterista.
Bernardo Sotomayor: Que já conhecíamos também.
LO: Sim, há muitos anos. Depois, como nenhum de nós sabia cantar, precisávamos de alguém que cantasse.
BS: E a pessoa que nos lembrámos que sabia cantar e conhecíamos era a Madalena [Tamen]. E nem foi por ser rapariga, foi por ser alguém que canta bem. E ela também tinha bom gosto musical, ouvia as mesmas coisas que nós na altura, foi mais esse o critério. Perguntámos e ela disse logo que sim.
LO: Eu e o Tomás andámos juntos na escola e antes dos reis tivemos imensas bandas juntos, bandas para aí de um mês, criávamos uma banda, “bora, bora tocar”, éramos os dois mais dois gajos, ensaiávamos e tocávamos bué durante um mês, fazíamos uns covers de metal ou o que fosse, e depois nunca mais tocávamos. Fizemos isto quatro ou cinco vezes, sempre novos projetos, então quando lhe apresentei este projeto ele disse “pah ‘tou farto de bandas de um dia” mas lá o convenci e ele disse que la ia tentar e isto foi um bocadinho mais para a frente. Depois veio o Vasco Vilhena.
BS: Pois foi. Nós queríamos um teclista.
LO: E a Tamen disse que conhecia um teclista e tal e pronto, está na banda em cinco minutos. Depois ele entrou mas até estava super ocupado com o projeto dele, e lá saiu amigavelmente. E depois numa boa noite de copos, não muito longe daqui, conhecemos o [José] Sarmento, um amigo nosso em comum apresentou-nos, começamos a falar de música e assim, e no meio aparece uma cabecinha loira e era o [Gonçalo] Bicudo. Começamos a falar com ele sem saber quem ele era, e descobrimos que ele tocava baixo. Nunca na vida tinha ponderado um baixo, éramos putos, sabia lá eu da importância dum baixo numa banda.
BS: Pensávamos que íamos trocando, eu toco umas linhas, tu tocas outras. E agora o baixo é um dos instrumentos mais importantes.
LO: E pronto, lá entrou o gajo.

E o nome…
BS:
O nome foi a causa da banda, na verdade.
LO: Nós tínhamos ideia de fazer música os dois.
BS: Pensámos sempre em nomes, mas nada era bom.
LO: Depois surgiu assim dito da boca para fora por uma rapariga pequenina –
BS: A minha irmã, que estava a brincar sozinha e disse “eu sou a rainha da república”.
LO:  Achámos que era um nome fixe para uma banda, se tivéssemos. Então olha, já temos nome, vamos.

E isto apesar de ser o vosso primeiro LP parece que tematicamente está super encadeado, parece que começam a falar de um tema e ficam nele, assim nas fábulas e no sonho.
BS: Sim, é tudo uma história.
LO: Na verdade a “Fábulas” – uma coisa engraçada, não sei se vocês fazem o mesmo, mas refiro-me sempre no feminino, como a “Fábulas” e não o “Fábulas”, porque para nós sempre foi uma musica só, começámos a compor uma música que no inicio tinha para aí 15 minutos ou assim.
BS: Começou mesmo por ser a Fábula e o Sidónio e ali uma junção no meio, e começámos a acrescentar partes antes, depois, e a perceber que a coisa ia-se estendendo e pensámos “ok, vamos fazer uma música de quinze minutos”, e quando fomos gravar começou a ficar cada vez mais e mais, mas que na realidade é uma historia e é uma música.

Pois, porque o álbum é todo encadeado, não há quebras entre músicas.
LO: Exacto, é vendido como um álbum de faixas separadas, mas para nós é só uma música, a “Fábulas”. É um bocado como muitas músicas no rock progressivo, mas na altura não havia muita necessidade de dividir em faixas porque era tudo vinil, então davam só nome a cada um dos lados. Como o “Tarkus” dos Emerson Lake and Palmer. Chama-se “Tarkus”, é uma música mas tem imensas partes lá no meio.
BS: Também como muitas músicas dos Yes e dos Pink Floyd.
LO: É um bocado à escolha do freguês.

Fotografia de Sara Miguel Dias / CCA

E relativamente a esse tema continuo, houve alguma coisa que inspirasse ser a Fábulas ou foi um tema que surgiu mais por ser algo que a música incita? Porque vocês também têm alguns elementos de dream e psicadélico.
LO: Eu não me lembro o que é que foi primeiro, se a história, se o nome fábulas, tanto que a música não é um conjunto de fábulas.
BS: É mais a ideia da ingenuidade e infantilidade de fábulas serem histórias sérias, e nós gostámos desse pitoresco e dessa imagem de contarmos uma coisa de maneira infantil, que não o era.
LO: A história, não linearmente, é muito inspirada no final da história de vida do Syd Barrett. E há muitas pequenas informações do álbum que são coisas do Syd Barrett e do último álbum dos Pink Floyd. Sidónio vem de Syd.
BS: E nem acabou por ser particularmente pelo Syd Barrett, mas pela ideia de alguém que é como ele.
LO: É inspirado nele, mas não é 100% sobre ele. Tem algumas informações que foram lá metidas, a história do rato Gerald, que é o rato que ele fala na “Bike”. Então pegámos nisso e fizemos a história da “Fábula”, ele enquanto rato. Mas lá está, não estamos a tomá-la como um pressuposto, achamos piada à história da queda dele das drogas e viragem para a jardinagem e pronto, foi por aí.

Então vocês escrevem as letras…
BS: A Madalena.

Certo, mas então escrevem sabendo a parte em que vão integrá-las? Como vocês disseram, sendo esta uma música enorme, como é que encontram as partes em que queriam ter voz?
BS: Ao início foi muito difícil. Às tantas estávamos a compor partes de instrumentos muito mais rápido do que ela estava a escrever letras, e não sabíamos onde pôr a letra, e eventualmente descobrimos. Mas acabámos muito por ter a tendência de complicar a composição musical e utilizar os instrumentos como voz, quando estávamos a desperdiçar um grande asset que é a voz da Madalena. Aconteceu também acrescentarmos mais a música porque queríamos pôr mais voz.
LO: Por exemplo, a “Nuvem Negra” foi um bocado esse registo. Fizemo-la instrumental e pensámos que em instrumental não teria a força que precisava, então mudámos e ajustámos a música para ter voz. Esta música trouxe também um sentido de aprendizagem para nós que foi apercebermo-nos de certa maneira da percentagem de tempo de voz e instrumental que temos no álbum – a instrumental é maior. Depois de gravarmos pensámos que ficou bem assim, mas dá-nos mais coisas para trabalhar no futuro; temos de ter um maior equilíbrio entre instrumental e voz.
BS: Também no fundo não queríamos só pôr voz por pôr voz e estar a ocupar espaço com voz que se calhar não faria sentido. Se calhar em muitas músicas a voz é o principal, mas nós aqui também queremos dar espaço a outros instrumentos, como o clarinete ou o saxofone que são partes que falam por si.

O clarinete ou o saxofone surgem como uma espécie de contraste com a influência do rock, ou mesmo dos Pink Floyd, que estavam a falar.
LO: Não diria particularmente Pink Floyd, mas rock progressivo sem dúvida… E daí não tanto. Vamos pôr isto de outra maneira, em termos de composições com sonoridades fora do normal, foi mais pelo progressivo que nós fomos, mas especificamente o clarinete foi porque conhecemos o Fernão [Biu] e vimos que ele tocava tão bem que achámos que ficava bem ele tocar ali clarinete.
BS: Nós também nunca trabalhámos instrumentos por si, foi mais trabalhar as melodias, e muitas melodias que tínhamos feitas em guitarra decidimos passar para teclado, outras de teclado para guitarra, e muitas delas acabavam por ficar mesmo bem por exemplo com um clarinete. Ou partes que achávamos que não tinham força, em vez de estarmos a pôr uma voz, pusémos um saxofone. Claro que conhecer o Fernão deu-nos isso enquanto alternativa.
LO: Outras, por exemplo, já foi mesmo pela música. Flauta foi mesmo por influências como Genesis. Há muitas músicas em que eles usam flauta e a “Hemlin” foi claramente uma ode a Genesis, queríamos uma música em que o instrumento principal fosse a flauta. Porque também é normal gostarmos de um certo registo musical e querermos emular aquilo que gostamos.

Então já tinham tudo estruturado ou idealizado quando foram gravar?
BS: Não, de todo. Nós tocamos esta música muito ao vivo antes sequer de irmos gravar. E cada vez que nós íamos gravando partes íamos percebendo que o que tocamos ao vivo e o que está gravado é completamente diferente. O que nos deu uma responsabilidade de fazer justiça à música em si, fazê-la soar como queríamos, porque começámos a perceber que queríamos mais da música e que tínhamos muito mais possibilidades de fazer coisas na música gravada, que ao vivo era impossível.
LO: E a bem ou a mal há uma grande luta, não é certo nem errado, foi uma coisa que até discuti há pouco tempo com o Fernão e o Gastão [Reis] dos ZARCO, sobre a pureza de um álbum de estúdio, que eles agora estão a defender no próximo álbum que vão gravar, em que estão só a tentar gravar coisas que consigam tocar ao vivo, sem grandes camadas extra. E é uma coisa que na “Fábulas” é muito difícil nós fazermos. Nós temos muitas camadas lá, e não é certo nem errado, é uma questão de opinião. Nós íamos a estúdio, e o Horse [Diogo Rodrigues, produtor do álbum] também nos ia dando muitas opiniões.
BS: Sim, claramente foi o guia nesta jornada.
LO: Mas como foi o primeiro LP que gravámos e somos jovens e ainda muito verdes no assunto, não tínhamos aquilo tudo muito bem pensadinho, fomos muito à descoberta.
BS: E a verdade é que o Horse foi muito o nosso Gandalf nesta quest, porque nós queríamos que esta música soasse o melhor possível e aí nem pensámos se conseguiríamos tocar ao vivo ou não, era fazer justiça à música.

Pormenor da capa de “Fábulas”

E dito isso, mesmo em termos de produção, com a ajuda que tiveram, indo para a Cuca Monga, têm uma quantidade de recursos e ajudas que se calhar não tinham antes.
BS: Sem dúvida alguma.
LO: Em primeiro lugar, para despachar este assunto que é muito fácil de dizer, em termos de back office não há qualquer dúvida. Nós somos não só preguiçosos como muito novatos em tudo o que é imprensa e concertos.
BS: E a experiência que eles têm é essencial, devemos-lhes muito.
LO: E em produção de álbum, Alvalade é logo um big plus para gravar. Logo com a “Samurai” foi uma grande diferença. Mas o maior plus de Alvalade é mesmo o Horse, o Diogo Rodrigues, que é um conhecedor e pêras. Por muito bons que sejam os aparelhos todos que eles têm lá, e as salas, e as mesas, a verdade é que há muitos estúdios com muitos bons materiais; mas o Diogo, mais que ser um grande connaisseur das coisas todas, ele a nossa música percebe muito bem, às vezes mais do que nós. E às vezes ele próprio dá-nos a volta e diz “não é nada disso que vocês querem, isso não vai ficar bem” e nos repensamos e concordamos que doutra forma fica melhor.
BS: Traz um input completamente diferente, porque às tantas estamos tão envolvidos numa ideia que nem sequer conseguimos pensar de maneira diferente.
LO: E é uma pessoa com uma grande cultura musical, também muito parecida com a nossa, que para nós é estarmos a gravar em casa.
BS: Este álbum sem o Horse não teria acontecido, eu acho.

E vocês agora complementam a Cuca Monga com uma parte que se calhar ainda não existia, não é, por aquilo que estão a criar, porque olhando para grande parte dos artistas que estão lá, eles trabalham mais no registo de fazer músicas individualmente, de x a x minutos, e vocês trabalham mais no registo de construir e adicionar.
LO: Sim, mas também ainda é muito cedo para responder a isso muito certamente, porque todas as pessoas que estão na Cuca Monga gravaram poucos álbuns. Não olhando para [Capitão] Fausto como Cuca, mas para os projetos deles, Bispo, El Salvador, ou Modernos, eles não têm muitos álbuns gravados de cada projeto, nem Ganso, nem Luís Severo. Mas assumindo que não vão saindo do registo deles, sim, nós somos um bocado diferentes. Acho que trazemos coisas que eles não trazem, mas que eles trazem muitas coisas que nós não trazemos – que é ali uma peça de puzzle complementada.

E nesse aspeto há alguém deles que vos inspire particularmente, ou das pessoas com quem estão a trabalhar?
LO: Em termos de pessoas ou músicas mesmo?

Mais em termos musicais.
LO: Em Ganso há muitas coisas.

Há um de vocês que é dos Ganso.
BS: Sim, o Bicudo, o baixista.
LO: Primeiro há logo essa influência direta. Há muitas coisas que Reis e Ganso não tem nada a ver mas há muitas pequeninas coisas e pequeninas ideias que se notam. Ganso fazem coisas que nós talvez também faríamos e vice versa, tanto no novo álbum que estão a gravar, como no Pá Pá Pá. Se tivéssemos a mesma ideia de música que eles, acho que acabaríamos por fazer coisas muito semelhantes, tratar da música da mesma maneira que eles.
BS: Há muitos elementos ali em comum, o que é um bocado inevitável, trabalhamos todos uns com os outros.
LO: Ganso tem o [João] Sala, que também está nos ZARCO; e ZARCO e Reis também são quase dois irmãos siameses.
BS: São gémeos falsos.
LO: Sim, portanto há muitas influências musicais. E não sei se diretamente em Reis, mas para mim Bispo é uma grande influência.
BS: Para o nosso teclista, Bispo é uma referência.
LO: Tanto que ele já tocou músicas de Bispo ao vivo com eles.

E olhando para o lado da performance, estavam a dizer que há coisas neste álbum que não vão conseguir concretizar exatamente da mesma forma ao vivo, como planeiam apresentá-lo então?
LO: Quando disse que não conseguíamos reproduzir tudo ao vivo, é verdade em termos de camadas e instrumentos, mas uma coisa que eu acho que a “Fábulas” ganha muito ao vivo é que soa bem na sua simplicidade. A música surgiu tocada ao vivo, não foi primeiro gravada em estúdio e depois começámos a tocar; já estamos a tocar isto ao vivo há um ano, não com todas as partes, mas o grosso da música. Sabemos que ela aguenta sem todas as camadas ao vivo.
BS: Já conhecemos muito mais a música ao vivo – onde pôr, onde tirar, o que mexer – que se calhar gravada. Mas o que estávamos agora a tentar fazer é integrar os dois, criar ali um consenso.
LO: O Fernão oficialmente não faz parte dos Reis, mas vai tocar a “Fábulas” connosco no MusicBox.

Para além do MusicBox, onde vão apresentar a seguir o álbum?
BS: Vamos apresentar no Porto dia 31 de Outubro, na Casa da Música, e mais uns quantos concertos que ainda não sabemos se estão confirmados ou não. Há um punhado deles. Mas o nosso agente trata disso, ele é muito diligente.

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