Quero ser alguém

por Rui Alves de Sousa,    19 Agosto, 2020
Quero ser alguém
“This Sporting Life”, realizado por Lindsay Anderson
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Não sei se isto também vos acontece, mas sempre que ouço a expressão “nova vaga” associada ao cinema, penso em revolução, liberdade e rebeldia. São os três primeiros conceitos que me vêm à cabeça quando surge, a meio de uma conversa ou até apenas num devaneio para os meus botões em voz alta na rua (os efeitos nos transeuntes são interessantes), qualquer uma das correntes às quais associamos essas duas palavrinhas. Há o movimento francês, sem dúvida o mais icónico e conhecido entre todas as “vagas” de uma pandemia que, para o bem da humanidade, foi apenas artística, com uma nova geração a querer mostrar que o cinema também podia ser outra coisa. Até neste país à beira mar plantado tivemos direito a isto porque o “vírus” da revolução cinéfila chegou a uma panóplia de cineastas que, nos intervalos das tertúlias em cafés requintados de Lisboa, acabou por fazer alguns filmes singulares.

A nova vaga inglesa, tema do ciclo que por estes dias está no cinema Nimas e nas restantes salas da Medeia espalhadas pelo país, foi uma explosão de forma e conteúdo. De todas as vagas, talvez seja a que mais se aproxima daquela ideia feita de que “o cinema precisa é de contar histórias sobre a gente”. Sim, eu sei, o cinema pode ser isso mas não só, claro, não façamos já polémica de coisa nenhuma. Adiante.

Os nove títulos da antologia proposta pela Medeia Filmes são muito diferentes. A responsabilidade é de cinco realizadores, com uma carta fora do baralho: Alexander Mackendrick, autor de “The Ladykillers” e outras belas comédias, não pertenceu à geração dos que provocaram um pequeno tumulto no cinema britânico, mas foi nessa época que fez uma obra que, pelo menos em espírito, pode ser associada a essa abertura de temas e abordagens, e que faz parte do programa: “Sweet Smell of Success”, filmado em Hollywood com duas das maiores estrelas do seu tempo (Burt Lancaster e Tony Curtis), tem um cinismo e uma visão tão diabólica dos media e dos que sobem a um estatuto de fama por nada de jeito dizerem que, em 2020, não espanta porque não perdeu nenhuma actualidade. É uma narrativa onde o glamour das imagens serve apenas para expor a podridão de um sistema, e raros são os filmes que conseguem fazer isso de forma tão implacável.

Essa tal vaga, a dos ingleses, deve mais a uma rebeldia de contestação, em que a fúria da classe trabalhadora e dos seus problemas começou a ser filmada de uma maneira realista e consistente, com a produtora Woodfall a ter um papel preponderante – o seu nascimento deve-se a “Look Back in Anger”, um dos filmes desta época que ficou de fora do ciclo. Podem ser filmes com intenções de ter novas linguagens, até porque são óbvias as influências de todo o terreno estético que se estava a descobrir por esses tempos pelo cinema, pondo de lado o sistema rígido clássico para dar lugar a câmaras à mão, cortes de montagem abruptos, e outros pequenos mecanismos.

Mas a grande revolução dos ingleses esteve patente nas suas histórias, sobre pessoas comuns e as suas tragédias e vitórias mundanas, e nos actores que as representaram. Um jovem e quase desconhecido Albert Finney viria a dar tudo de si em “Saturday Night and Sunday Morning” numa personagem ambígua e difícil, dividida entre mulheres e com uma peculiar visão do mundo. É outro dos achados deste ciclo, assim como “If…”, o filme com Malcolm McDowell que, por cá, merece ser bem mais conhecido: ele não é um excelente actor só por causa de uma certa laranja. E há outros filmes que ainda não vi e que espero, agora, poder tirar a teima: três de Tony Richardson (os emblemáticos “A Taste of Honey”, “The Loneliness of the Long Distance Runner” e “Ned Kelly”, objecto de culto protagonizado por Mick Jagger); “The Knack… and How to Get It”, comédia de Richard Lester (vale a pena ver as suas aventuras cinematográficas com os Beatles); e “A High Wind in Jamaica” (outro Mackenderick, um filme de aventuras).

Mas eu queria falar-vos de “This Sporting Life”. É de Lindsay Anderson e tem Richard Harris como um jogador de rugby que leva a competição a sério. Demasiado a sério.

Vi o filme às horas a que normalmente se fazem as projecções de imprensa. Desabituado destas sessões matutinas (que tanto aproveitei nos tempos de faculdade para em troca escrever uns textos para sites de cinema), pensei que não ia aguentar: estava cansado, há dois ou três dias que não conseguia dormir bem. Poderia rever o filme mais tarde, em casa, se o João Pestana me apanhasse desprevenido durante o visionamento no ecrã grande – mas para quê desperdiçar uma ida ao cinema se não era para prestar atenção? Depois de um pequeno debate interior lá me decidi a entrar nos eixos e não faltar à projecção. E ainda bem!

É difícil não ficar arrebatado com este filme. São duas horas e catorze minutos que passam a voar. O poder dos grandes filmes é este, o de mexer connosco e de nos obrigar a estar em sintonia com eles. Os meus receios rapidamente foram ignorados porque “This Sporting Life” é um filme invulgar, que me fez, de repente, esquecer os problemas de sono. A tragédia inerente ao protagonista torna-se sufocante, de tão humana que é. Ele, um brutamontes do desporto, que parece ter tudo o que poderia ambicionar é, afinal, mais frágil do que aparenta. Quer encontrar o amor (na personagem da fabulosa Rachel Roberts) mas não deixa, apesar disso, o seu lado auto-destrutivo. No campo ele pode jogar rugby, mas na vida real parece um boxeur que luta com os outros para impedir de se confrontar com o que está mal em si próprio.

E é isto, no meio de todas as inovações técnicas e estilísticas destas novas vagas, que realmente sobressai: esta experiência tão palpável de um pobre diabo chateado consigo próprio que estará sempre insatisfeito, um anti-herói perdido na sua amargura e no desejo de ser outro. Sim, a montagem “desordenada” também ajuda a criar o ambiente certo para o filme. Mas não houvesse a força tremenda dos actores e das circunstâncias pelas quais passam e, no fim, “This Sporting Life” só seria uma curiosidade de uma época. Felizmente, é bem mais do que isso.

Sente-se Marlon Brando em Harris e não só por causa de uma certa coisa do filme que faz lembrar “Um Eléctrico Chamado Desejo”. Ele tem muito do Brando de “Há Lodo no Cais”, aquele tipo que só queria ser alguém mas que não voou mais alto por causa das circunstâncias. Harris é uma versão mais irascível dessa outra personagem, o homem que acumula derrotas pessoais transmitindo a sua angústia pela agressividade inerente à sua maneira de ser. E mesmo que as circunstâncias lhe sejam vantajosas, ele conseguirá sempre dar cabo de tudo. Ao contrário de Brando, que na cena emblemática do “Lodo”, reclamava ao irmão que “I coulda been a contender”, Harris esteve no topo, mas talvez lhe seja difícil lá ficar por causa da guerra que trava contra mundo e por faltar “a outra parte”, o lado emocional que, bem vistas as coisas, era o que Brando conseguiu ter no filme de Kazan. Mas ambos não querem acabar na sarjeta. Enfim, não se pode ter tudo na vida, e esta é uma lição que, mesmo que a encontremos nas existências em movimento que acompanhamos no ecrã, só a percebemos mesmo com a constatação da realidade dura, decepcionante e injusta do mundo.

Gostava de poder escrever coisas mais aprofundadas, mas infelizmente não me sinto capaz. Lamento, não sou o Camões ou o Shakespeare das crónicas de cinema, estando mais próximo da sensibilidade de um escritor-fantasma encarregado de escrever a autobiografia do Batatinha. Já tentei por várias vezes dar corda aos sapatos metafóricos que são os dedos das minhas mãos para tentar criar algumas frases com um mínimo de coerência e interesse cultural, poético, ou até culinário. Mas não consigo. E que posso eu dizer de relevante quando há tanta boa análise por aí no vasto mundo da internet? Apenas acrescento: vale mesmo a pena descobrir esta vida de desporto, uma luta pela sobrevivência que se faz a cada instante e da qual, no fim, talvez ninguém se consiga salvar.

Mas já agora, e por ter falado no meu período áureo como “crítico” de cinema (carreguem bem as aspas na palavra), permitem-me que resuma de seguida a minha opinião sobre “This Sporting Life” utilizando alguns clichés desse tipo de escrita? Então cá vai: É uma montanha russa de emoções. Uma narrativa trepidante e alucinante. Vai fazê-lo/a ficar colado/a à cadeira. Ah, e já me esquecia: a performance de Richard Harris é um verdadeiro tour de force.

«This Sporting Life» volta a passar no Nimas no próximo dia 31, pelas 16 horas.

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