Que se danem as papas

por Cronista convidado,    9 Julho, 2020
Que se danem as papas
Fotografia de Chuttersnap / Unsplash
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Há pessoas que sabem o que querem ser desde que dão os primeiros passos — quem sabe, talvez as suas primeiras frases tenham sido mesmo “E pronto, tome dois comprimidos em jejum ao almoço e dois antes de se deitar.” ou “Isso com o Teorema Fundamental do Cálculo vai lá!”. Não sei que papas é que comem esses bebés, mas eu, orgulhosa bebé Cerelac, disse qualquer coisa tão eloquente como “Papá papa.”. Portanto, não devia ter sido uma grande surpresa quando aos 18 anos me apercebi de que não fazia ideia nenhuma do que queria ser “quando fosse grande”. O raio das papas… 

A verdade é que nunca fui boa com decisões. Demorei um ano inteiro para decidir se queria Francês ou Espanhol no 7.º ano, convencidíssima de que esse seria o fator decisivo para o meu futuro emprego e para a minha felicidade. Visto que o pouco que sei de francês é tão ridículo como o espanhol que tento desenrascar ali e acolá, seria de esperar que no final do meu 12.º ano já tivesse aprendido a levar as minhas decisões com maior descontração. Mas não, claro que não. 

No 10º ano é fácil, pelo menos foi assim que me apresentaram a situação — “Se não sabes o que queres, vai para Ciências e Tecnologias para teres um bocadinho de tudo”. Eu lá comprei a dica, e digo alegremente que a t-shirt até me serviu bem, apesar de ter ficado um bocadinho justa nas disciplinas de Matemática e Físico-Química. Durante esses três anos vi cursos aqui e ali, como todos os meus amigos — devemos ter sido todos bebés Cerelac, porque não me lembro de nenhum de nós ter grandes certezas. Mas pronto, também não havia pressa, o importante era ter o máximo de cartas para jogar mais tarde — acho que nunca acreditamos bem que o secundário acaba até ao dia em que não voltamos a meter lá os pés.

No final do 12.º ano convenci-me, sem grandes certezas, de que queria Direito na Universidade Nova — era uma aluna mediana, gostava de um bocadinho de tudo e não sabia bem o que queria, então deixei-me ir e apostei na “Roleta Russa”: como segunda opção meti Engenharia, como terceira Ciências da Comunicação, como quarta Biologia Molecular e por aí fora. Estudei afincadamente para o exame de Português e fui descontraidamente ao exame de Matemática… mas a vida trocou-me as voltas. Não sei o que raio é que se passa com os exames para que quanto menos nos ralarmos com eles, melhor nota tirarmos. Resultado? Entrei no Instituto Superior Técnico (IST) em Engenharia do Ambiente.

Para minha grande surpresa cedo descobri que Engenharia do Ambiente não era bem salvar golfinhos e unicórnios. O primeiro semestre até foi interessante — conheci pessoas incríveis (que não eram de todo os “robôs automatizados” que todo o misticismo em torno do IST me havia feito prever), comecei a escrever para o Diferencial (Jornal de debate dos estudantes do IST) 1, vivi o melhor ambiente de praxe que já presenciei e, bom, havia churrascos todas as semanas. O problema foram as cadeiras — nenhuma me motivava a querer saber muito mais. O que, mais uma vez, não devia ter sido tão surpreendente como foi, visto que se o “S” já me estava justo no secundário, não sei porque raio é que me fui enfiar numa t-shirt “XS”. (Atenção: o Técnico faz-se desde que se goste). Não era infeliz, mas não era feliz. Tudo me era um bocado indiferente. Até o futuro. Foi então que apostei em aumentar o meu baralho de cartas mais um pouco, até perceber melhor quem era — continuei a fazer o segundo semestre e preparei-me para os exames nacionais.

Há pessoas que se mandam de cabeça e corre bem. Muitos amigos meus fizeram isso e acertaram à primeira. Outros tinham muitas certezas e acabaram por perceber que afinal não sabiam treta nenhuma. Eu não sabia treta nenhuma e pronto, caí de rabo. Não sabia. “Ah, mas de certeza que tinhas uma leve ideia!”. Não, não sabia mesmo, de todo. Um amigo meu uma vez disse-me que se se entrar numa gelataria e só houver gelado de chocolate e morango escolhes um e sais feliz, enquanto que se houver todos os teus sabores favoritos sais sempre com dúvidas. Suponho que seja o mesmo que entrar numa gelataria com imensos gelados que parecem deliciosos e que nunca provaste, porque foi mesmo isso que aconteceu. Nunca tinha sido engenheira, nem jornalista, nem política, nem professora, nem veterinária, nem bióloga… Como é que era suposto eu escolher o que queria ser? Tudo me parecia demasiado definitivo e enfadonho. Eu tinha 18 anos e já tinha de saber onde é que queria trabalhar das 9h às 18h para o resto da minha vida? Fogo, as outras papas de bebé eram assim tão caras?

Fui a muitas universidades infiltradamente — procurava os horários online e sentava-me na última fila… claro que às vezes me enganava na sala e só me apercebia a meio, mas fez parte (não gostei de Direito, já agora). Li a lista de cadeiras e a descrição de muitos cursos. Chateei muitas pessoas — alunos e profissionais dos cursos em questão, amigos, professores, família… acho que nem o gato da vizinha escapou. Mas acima de tudo, aprendi a ser paciente comigo. Milhentas crises existenciais depois, acabei por decidir que queria Ciências da Comunicação — dava para jornalismo e edição de textos e efetivamente tudo o que me dava gozo naquela altura era escrever no Diferencial. 

Ai, essa coisa das grandes certezas! Seria de esperar que por esta altura fosse mais inteligente que isso, mas não foi novamente o caso. Por obra de sabe-se lá o quê as médias ficaram loucas nesse ano. Ou mais loucas do que eu estava à espera, pelo menos. Vi a primeira fase passar e não entrei. Continuei no Técnico. Vi a segunda fase passar e entrei em Ciência Política e Relações Internacionais e bom, na terceira fase não entrei em Ciências da Comunicação por uma vaga. Foi lixado. Agora que sabia o que queria, a DGES não me o deixava ter. Gritei muito. Chorei muito. E definitivamente praguejei muito. 

Para que conste, eu não sabia muito bem o que era Ciência Política e Relações Internacionais — tinha algum interesse em perceber/resolver as grandes crises humanitárias mundiais e vontade de dar um pontapé no rabo do Trump e do Bolsonaro, mas nunca tinha ligado ao assunto mais do que o necessário para fazer um voto consciente e amigos estrangeiros. Porém, saltei — não sabia se havia terra do outro lado, mas sabia que onde estava só me ia afundar mais. Aliás, os meus pais sentaram-se comigo no sofá e fizeram-me perceber que não tinha muito a perder. Há que dar os louros a quem realmente os merece.

Felizmente, isto é uma história de final feliz, porque gostei de Ciência Política e Relações Internacionais e apercebi-me de que era um curso mais indicado para mim do que Ciências da Comunicação. É verdade que continuam a haver cadeiras chatas, mas até essas são minimamente interessantes. Não, nenhum curso é perfeito, lamento informar. Só que agora levanto-me da cama com mais energia e olho com gula para o futuro — faz mesmo diferença estar num curso de que gostamos. Fiz amizades novas e apaixonei-me pela FCSH. E acima de tudo, apercebi-me de que não sabia nada do mundo. Não que saiba agora, mas ao menos sei que não sei. 

A maior diferença que sinto é que no Instituto Superior Técnico vestem a camisola para tudo, seja para construir o melhor avião de papel ou para comer uma bolacha melhor do que os outros; e grande parte da comunidade da FCSH não tira a t-shirt da gaveta. O que à primeira me pareceu ser puro desinteresse, depressa se tornou em algo mais grave. A falta de emprego e de financiamento da Cultura em Portugal faz com que muitos alunos me tenham confessado que “mais vale ficar na esplanada e aproveitar, já que a maioria de nós vai efetivamente acabar em caixas de supermercado quer se esforce ou não.”. Eu sei que a situação é feia, daí ter estado receosamente à espera de um mar turbulento cheio de competição, que existe de facto em Ciências da Comunicação e em Ciência Política e Relações Internacionais, todavia existem muitas piscinas com tubarões que parecem ter desistido da corrida logo na partida. Não precisamos de construir aviões, mas não vamos sequer tentar fazer o máximo do papel que temos? Onde andam os Camões que escrevem textos tão bonitos no Instagram? 

No final do dia é isso, somos todos diferentes, logo é normal que tenhamos ritmos e caminhos diferentes. Sim, pode ser desesperante não ter respostas quando o mundo parece precisar urgentemente delas, mas faz parte — há coisas que não podemos apressar, nem forçar; elas hão de chegar eventualmente: só nos resta aguentar e fazer o melhor que conseguimos entretanto. Também faz parte perdermo-nos e encontrarmo-nos, construirmos caminhos e acabarmos por optar por atalhos; afinal, se nós próprios vamos mudando como é que é suposto o nosso caminho não o fazer? Isto não é nada que nenhuma mãe já não tenha dito aos seus filhos e há de certeza milhentas plaquinhas com estes clichês escritos, e ainda assim não deixam de ser verdade. Claro que só os aceitei quando concluí isso da minha própria experiência, tal como aconteceu com outros clichêzinhos a que tive, constrangidamente, de ir dando razão na vida. Precisei do ano no IST para perceber quem é que eu sou e, consequentemente, descobrir mais ou menos o meu lugar no mundo. E sabem que mais? Eu, que já fui por muitas pessoas rotulada como “a pessoa mais perdida na vida que já conheci”, acabei bem. Se sei o que é que vou mesmo fazer? Não, não sei. Tenho uma ideia que me guia minimamente e isso basta. O importante agora é continuar a fazer por ser feliz. Que se danem o raio das papas.

1No início do ano o meu mentor no IST tinha-me dito “Não só o curso não se faz sozinho, como é bom que se inscrevam noutra atividade que vos ligue à faculdade. Mais para a frente vão precisar de ter amor à camisola por outra razão que não sejam cadeiras passadas.”. Ainda hoje esta frase é a linha condutora da minha experiência universitária e penso genuinamente que a Universidade seria um sítio melhor se todos os alunos tivessem passado pelo meu mentor.

Crónica de Rita Serpa
A Rita é estudante de 
Ciência Política e Relações Internacionais.

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