Quaresma

por Frederico Lourenço,    6 Março, 2019
Quaresma
Jesus no deserto imaginado pelo pintor italiano Moretto da Brescia
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Na religião do «deus triste» (como Fernando Pessoa famosamente chamou a Jesus), não há dias mais tristes do que os dias que começam hoje, Quarta-Feira de Cinzas, e que vão até à Sexta-Feira Santa.

É o período em que nos damos conta de quanto o cristianismo incentiva duas coisas perigosas para a saúde mental: o «tudo ou nada» (agora é só abstinência; depois virá a Páscoa com o seu contrário) e a distorção cognitiva mais perigosa de todas, que é a de nos colocarmos objectivos inatingíveis que necessariamente vamos falhar, produzindo em nós um sentimento de revolta e de decepção em relação a nós mesmos.

A Quaresma é a «mise en abîme» de todas as abstinências que a vida cristã exige. Colocamos como objectivo penitenciarmo-nos, abdicando de boa comida, de boa bebida e de sexo. Falhamos, claro; e o resultado é que ficamos só com o falhanço. Não há vantagem espiritual nenhuma.

Na Quaresma, ocorre-me sempre a questão do celibato dos padres, chamados a praticar uma forma de abstinência durante uma vida inteira que põe em prática duas das mais perigosas distorções cognitivas para a saúde mental humana: escolherem entre tudo ou nada, sem gradações de possibilidade(s) entre os dois extremos; serem obrigados a uma opção de vida como a castidade, algo que vai provocar continuamente um sentimento deprimente de falhanço.

Jesus esteve no deserto quarenta dias só uma vez (ao contrário dos cristãos chamados pelo ano litúrgico e reviver esta experiência uma vez por ano). O Evangelho de Marcos (o mais antigo dos quatro canónicos) nem nos diz que Jesus jejuou: a informação de que «os anjos serviam-no» dá a entender, pelo uso do imperfeito (em grego «diēkónoun»), que eles vinham regularmente trazer uma merenda angélica para ele comer (Marcos 1:13).

A ideia de que Jesus jejuou é proposta pelos evangelhos que foram escritos depois de Marcos (Mateus e Lucas). Quanto a João, esse achou o episódio dos quarenta dias no deserto tão irrelevante para a vida de Jesus que nem o incluiu no seu evangelho. De resto, os evangelhos dão amplo testemunho de que o Jesus histórico era contra o jejum e, até, um «bon vivant» (Mateus 11:19; Lucas 7:34).

Um aspecto que certamente distinguiu o movimento iniciado por Jesus daquele que João Baptista já iniciara foi a questão do ascetismo. João Baptista, profeta que optou por viver no deserto e alimentar-se da forma mais frugal possível, era um asceta e exigia dos seus discípulos o jejum. Jesus, pelo contrário, foi um profeta que entrava nas aldeias, nas vilas e nas cidades e estava no meio das pessoas, comia e bebia com elas, sentando-se à mesa com toda a laia de gente. Não foi um proponente da distorção cognitiva conducente a pensamentos negativos («tudo ou nada»; objectivos ascéticos que vão inevitavelmente redundar em falhanço deprimente). Não trouxe às pessoas a mensagem negativa da abstinência, mas sim a mensagem positiva do amor.

Para quê complicar, então, o que é tão simples?

Enfim. Seja como for, boa Quaresma – mas, vá lá, tentem não exagerar nas cinzas e no saco. «Não há necessidade».

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