Quarentena. “Máscara-19”, ou a irresponsabilidade das “boas acções”

por Rui Cruz,    9 Abril, 2020
Quarentena. “Máscara-19”, ou a irresponsabilidade das “boas acções”
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Rita estava nervosa. De passo curto e rápido percorria os passeios outrora cheios, nos tempos antes da pandemia. Não era suposto estar na rua, tinha dispensa cheia, os filhos em casa e nunca fora de andar a cirandar, por isso nem a desculpa dos “passeios higiénicos” lhe servia, mas Rita tinha de ir à farmácia e foi isso que disse ao seu marido. Ninguém estava doente, tinham álcool suficiente para desinfectar um bloco operatório inteiro e luvas com fartura, mas Rita precisava de ir à farmácia.

Rita estava casada desde os 19 anos e toda a gente adorava o seu marido. Ela também. “É bom homem” diziam-lhe. E ela acreditava. “Se tanta gente o diz é porque é verdade. E se um homem tão bom e de quem tanta gente gosta me bate, certamente que a culpa é minha. Alguma coisa eu devo estar a fazer mal.”, pensava muitas vezes. A primeira vez que sentiu a mão do marido na cara foi dois anos depois do casamento, estava ela grávida da primeira filha de ambos. Rita estava cansada e enjoada, quando o marido lhe disse que estava com fome ela respondeu “podias ir buscar um frango que eu hoje nem consigo ver comida”. Ainda não tinha acabado a frase quando a mão, aquela mão que tantas vezes lhe afagou o cabelo durante o namoro, lhe assentou na cara. Rita nem sequer teve reacção, não chorou, não reclamou, não ripostou… apenas se levantou e foi cozinhar. Desde esse dia, já perdeu a conta das vezes que aquela mão lhe marcou o corpo.

Rita nunca contou a ninguém. Também ia contar a quem? Não tem amigos, o marido não gosta. Não tem colegas, porque o marido ganha bem e prefere que ela fique em casa a tomar conta da família em vez de ir trabalhar. Não tem família, pois eles estavam sempre a criticá-la por ter deixado os estudos para casar e por deixar o marido controlar-lhe a vida. Rita não tinha ninguém, só os filhos, o marido e os amigos deste, os tais que lhe diziam o quão bom homem ele era. A única coisa que ainda distraía Rita eram as redes sociais, principalmente agora, em quarentena, quando o tempo não existe e aquela mão está sempre a centímetros de distância. Não que Rita falasse com alguém, que flirtasse ou fizesse vídeos e posts incríveis com milhares de likes, mas nas redes sociais via coisas, via pessoas felizes ou algumas ainda mais tristes do que ela, lia notícias que muitas vezes não percebia e vídeos de bichos que lhe enchiam o coração. Foi enquanto via um desses vídeos que Rita sentiu a mão do marido novamente, desta vez mesmo em cheio no ouvido direito. Estava a ficar cada vez com mais pontaria, ele. Também já eram pelo menos 15 anos de prática. Rita caiu no chão, desorientada, e entre zumbidos ouviu o marido a dizer “a puta da tua filha agora namora?! Quem é que lhe deu autorização para namorar? Esta merda não é casa da Mãe Kikas!”. Rita tentou falar, mas antes de o conseguir viu o marido a sair em direcção ao quarto da filha, abrir a porta e fechá-la atrás de si. Quando se conseguiu levantar, Rita correu para a porta do quarto que se abriu com o marido a sair e a ajeitar o cinto. Rita olhou para dentro e viu a sua filha a chorar. Estava com a cara marcada e a sangrar do nariz. Rita abraçou-a e não disse mais nada.

Nessa tarde, e depois de tudo acalmar como sempre acalma quando o marido adormece no sofá, Rita abriu o Facebook para sonhar um pouco. Viu cães que recebiam soldados, viu gente enfadada de estar fechada em casas que pareciam palácios e viu vídeos de “pegadinhas” que a faziam sempre rir, especialmente em dias difíceis como este. Foi nessa altura que recebeu uma mensagem da filha. Rita estranhou, a filha nunca falava com ela pelas redes sociais, tinha vergonha da “cota que não percebe nada disto”. Rita abriu a mensagem, era apenas um link para um post de uma coisa chamada “Assembleia Feminista Lisboa” e mostrava uma campanha de apoio e salvação de vítimas de violência doméstica. Rita tremeu. Leu o texto todo, olhou para o cartaz, releu o texto e voltou a olhar para o cartaz. “Máscara-19. Basta entrar numa farmácia e dizer Máscara-19 e vêm salvar-nos.”. Olhou para o quarto da filha e viu-a a porta, cara inchada, a olhar para si. Sem precisar de falar, Rita percebeu o que a filha lhe dizia.

Rita estava nervosa. De passo curto e rápido percorria os passeios outrora cheios, nos tempos antes da pandemia. A farmácia estava ali ao virar da esquina. “Máscara-19, Máscara-19” repetia para si. Desta vez Rita tinha alguém a quem contar, desta vez Rita tinha alguém que a podia salvar, a ela e aos seus filhos.

“Boa tarde, minha senhora. Em que posso ajudar?”

“hum.. ah… Eu… Eu queria… uma… máscara-19…”

Rita esperou a resposta, aqueles segundos de silêncio pareceram anos.

“Máscara-19 não temos, mas não se preocupe, vá para casa que arranjamos qualquer coisa amanhã.”

Rita sentiu-se 10 anos mais nova. Eles tinham percebido o código. Rita estava finalmente salva, os seus filhos estavam salvos, a sua vida ia mudar. Pela primeira vez em muitos anos, Rita sonhou sem precisar de abrir as redes sociais. Via-se a estudar, com amigos, via-se sem medo e bonita. Pela primeira vez em muitos anos, Rita sentiu coragem.

“Onde é que estiveste? A farmácia não é assim tão longe” ouviu a voz do marido a questionar, mal entrou em casa.

“Fui à farmácia e aproveitei para esticar as pernas um bocado, que já estou farta de estar em casa”, respondeu.

“Farta de estar em casa?! Farta de estar em casa porquê? Até parece que o teu marido e os teus filhos não te chegam. Precisas de andar aí a abanar o rabo para os outros é? Disso não te fartas, sua puta.”

“Não me voltas a chamar isso!”

“O quê? Então mas já a formiga tem catarro?”

“Toca-me, toca-me outra vez que desta vez vai ser a última!”

“É a última porque vou dar cabo de ti, sua porca!”

Enquanto sentia os murros e pontapés do marido a percorrerem-lhe o corpo e os gritos dos filhos à distância a encherem-lhe os ouvidos, Rita sorria. Sorria porque era a última vez. Sorria porque a polícia ia chegar e levar o marido para longe dela e dos miúdos. Sorria porque depois de tantos anos foi tão fácil. Sorria porque foi preciso uma pandemia para isto. Sorria como que a agradecer à Assembleia Feminista Lisboa por tudo. Sorria porque ia tudo acabar bem.

Rita acordou na cama, tentou abrir os olhos, mas só um obedeceu. Quando conseguiu focar a visão, viu a sua filha ao seu lado. Onde estava? Teriam sido levados para alguma casa de acolhimento, estariam no hospital? Não, estavam no seu quarto. Rita tentou sentar-se, mas não conseguiu, tinha dores por todo o corpo.

“O que se passou? Onde está o teu pai?”

“Está na sala. Estás a dormir há quase dois dias. Desmaiaste enquanto ele te batia e ele depois trouxe-te para aqui, tem ficado a dormir no sofá. E eu tenho estado aqui a tomar conta de ti.”

“E a polícia? Onde está a polícia”

“Não veio ninguém. Não… Não vem ninguém.” e estendeu-lhe o telemóvel.

Rita pegou no telemóvel, que parecia pesar uma tonelada pois toda ela era dor, até o acto de respirar lhe parecia tortura, e a custo leu “Máscara-19: Uma campanha para ajudar vítimas de violência doméstica que não está (nem esteve) a funcionar”. Era o título de uma notícia. Rita deixou cair o telemóvel e riu uma última vez, antes do seu corpo imitar a campanha e a atraiçoar.

Aqui ficam as sugestões do dia:

Comédia:

George Carlin – It’s Bad For Ya

Música:

16 Hosepower – Secret South

Cinema:

Jaco Van Dormael – Le Tout Nouveau Testament

Literatura:

Anne Rice – A Rainha dos Malditos

Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica
Tel.: 800 202 148 (gratuito, 24 horas, todos os dias)
Linha SMS: 3060 (gratuito, 24 horas, todos os dias)
Email: violencia.covid@cig.gov.pt
APAV 116 006 (gratuito, 09h-21h, todos os dias)

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