Quarentena. Dia das Mentiras

por Rui Cruz,    1 Abril, 2020
Quarentena. Dia das Mentiras
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Hoje foi o primeiro dia, desde que começou a quarentena, em que dormi como deve ser. Aliás, mais do que como deve ser porque dormi 12 horas. É aquele dia do mês em que faço o equilíbrio por nos restantes dormir 4 ou 5. Não sei foi por isso, mas a verdade é que hoje acordei mais calmo, mais empático e até simpático, o que me fez pensar, pela primeira vez, no amor nestes tempos de pandemia. Pensei nos namorados que estão juntos, nas famílias, nos amigos que partilham casa… E pensei, especialmente, naqueles casais que estão juntos há vários anos e que, devido ao COVID-19, se veem agora a fazer a quarentena separados. Deve ser horrível… saberem que ainda vão encontrar uma cura. Ah! Humor! Pensavam que eu estava lamechas, não é? Não. É só minha partida do Dia das Mentiras. Sou muito jovial e brincalhão.

Por acaso, este é um dia que me desperta sentimentos contraditórios. Por um lado, odeio. E odeio porque este é o dia em que toda a gente pensa que é engraçada e original e decide contar mentirinhas ou fazer partidinhas que não têm jeito nenhum. Não, Carla Sofia, eu não vou acreditar que estás grávida só porque postaste uma foto do resultado positivo de um teste de gravidez, até porque se estivesses mesmo grávida não ias estar a postar isso, ias estar caladinha para ninguém saber que foste abortar. Não, Carlos Augusto, eu não vou acreditar que és gay só porque actualizaste o estado de facebook a dizê-lo, não porque haja algum mal, mas porque és tão pouco sofisticado que escreveste “gei”. Não, Adalberto, eu não vou acreditar que foste despedido só porque me mandaste um whatsapp a pedir guito para comeres, não porque não acredite que o COVID-19 afectou o negócio das massagens, mas porque, simplesmente, não te quero dar guito e vou usar o dia das mentiras como desculpa para não mandar por MBWay. Estás a ver porque é que este dia é péssimo, Adalberto? Também o devias odiar, é por causa dele que vais dormir de barriga vazia. Mas vá, pelo menos este ano, como estamos todos em isolamento, não temos de fingir que rimos muito quando nos contam a mentirinha ao vivo. É que não deixa de ser ridiculamente irónico que a maior mentira do Dia das Mentiras seja o pessoal rir-se das mentiras dos outros.

Por outro lado, adoro. Porque este é o dia em que podes dizer coisas como “odeio-vos a todos e gostava que morressem de uma maneira lenta e dolorosa à minha frente” e o pessoal pensar todo “oh.. lá este ele com as suas mentirinhas parvas, tão engraçado!”. Sim, porque este é o dia em que toda a gente pode fazer o test drive de uma verdade inconveniente ou segredo que quer revelar. É mandar cá para fora, ver a reacção das pessoas e no final do dia decidires se queres levar para casa e assumir que é verdade, que sim senhor, foste stripper na Tailândia durante um semestre para pagares dívidas de jogo, ou se fica ali no stand das mentirinhas e dizes só que “era a gozar, apanhei-vos bem! Ah! Vocês também caem em tudo…”.

Agora, este ano, esta parte boa do Dia das Mentiras passou-me completamente ao lado. É que só levei com a parte má. E de uma maneira estranha. Primeiro, acordo e leio que o António Costa foi ao programa da Cristina. Pensei logo que era uma mentirinha idiota, afinal não. Depois leio que o António Costa esteve bem no programa da Cristina, não foi populista e acalmou a malta não mentindo e sendo assertivo, mesmo com notícias menos boas. Não acreditei, óbvio. Fui ver, era verdade. A seguir leio que o Trump finalmente percebeu a real dimensão do COVID-19, declarou medidas de segurança, desistiu da ideia de abrir o país na Páscoa e admitiu baixas elevadas o que, como é evidente, vi logo que era partidinha. Vou confirmar e, afinal, aconteceu mesmo! Ou seja, apanharam-me em todas as mentirinhas parvas, mas nenhuma delas era mentira. Enganaram-me com a verdade, como o Garrett. Pau! Referência ali mesmo a puxar o cachimbo e a boina.

Mas no meio disto, o que me chateia mais no dia de hoje é que tanto o Costa como o Marcelo já anunciaram que o estado de emergência é para se manter, pelo menos, mais 15 dias. E sendo nós cromos como somos, estou mesmo a ver a malta a sair para a rua só porque ouviu e pensou “hoje é Dia das Mentiras!”.

E pronto, aqui ficam as sugestões do dia.

Comédia:

Dylan Moran – Like, Totally

Música:

More República Masónica – Egostrip. A Retrospective

Cinema:

Jim Jarmusch – Coffee and Cigarretts

https://www.youtube.com/watch?v=lBgJ7OrybVk

Literatura:

Yuval Harari – Homo Deus: Homo Deus Uma Breve História do Amanhã

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