Quando a poesia está do lado de dentro, dos que estão dentro da prisão

por Catarina Fernandes,    26 Março, 2018
Quando a poesia está do lado de dentro, dos que estão dentro da prisão
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Filipe Lopes leva a palavra poética aos locais onde ela é mais precisa. Onde as grades, podem não deixar ver os pássaros que voam mas através de um poema “se olha um pássaro que passa, só porque passa e se olha”.

Como foi o caminho de Filipe levá-lo a trabalhar a poesia nos serviços prisionais? Ora, um poema pois claro. Concretamente um poema – “Embriaga-te” de Charles Baudelaire – que diz ele, o salvou, quando em jovem, porque lhe mostrou que podia escolher o seu caminho, que tinha a liberdade para fazer as suas escolhas. Com o seu grupo “Contador de Histórias”, começou a levar poesia, e palavras a hospitais, quando recebeu um convite para ir à prisão de Sintra, ler alguns textos, aquando a celebração do Concurso de Escrita para Reclusos. Aqui encontrou um público interessado, que escrevia bem e pensou que poderia ajudá-los a encontrar novos horizontes, através das palavras.

Em 2003, Filipe Lopes, de forma voluntária inicia este processo, quase como um peregrino e nunca como um pregador, pelos serviços prisionais de Portugal, apresentando, em curtas sessões, poemas que falam sobre coisas que tocam na vida de cada um, do lado de dentro: a solidão, o amor, a saudade, a alegria e a tristeza.

Pensarão algumas pessoas, que este projecto é menos meritório por se tratar de reclusos e não de crianças, por exemplo, resposta que Filipe ouviu de muitas empresas quando pediu apoios para o seu projecto. Mas que, como bem relembra, o recluso de hoje será o nosso vizinho de amanhã . Filipe Lopes é um activista da palavra, um sonhador do impossível e um declamador de “poemas enlouquecem as pessoas por dentro”; um homem que consegue ver a igualdade onde a maioria vê diferença. O que me separa a mim do recluso? Uma escolha? Um carácter? Posso julgar? Quem sou eu para julgar? Que posso fazer para além de julgar? O Filipe escolheu levar poesia, para que as pessoas possam encontrar-se a si próprias, possam encontrar o seu caminho e porque, como acredita, a poesia pode tornar as pessoas melhores, desde que elas queiram. Mas, para quererem precisam de saber que têm essa escolha e como é que podem fazer essa escolha, e nisso pode a poesia dar o empurrão, para o encontro com as partes submersas de nós.

Filipe é sempre bem recebido nas prisões onde entra, porque não se coloca numa posição de superioridade em relação aos seus interlocutores. É um olhar que, não julga apenas ouve e tenta mostrar caminhos, no caso usando a poesia como veículo de condução. Com esta atitude consegue desarmar o mais forte dos homens, que cometeu um crime, e colocá-lo a chorar perante a força de um poema. Estas sessões capacitam os reclusos de muitas maneiras, a encontrar e formular palavras que os ajudem a descrever aquilo que sentem, a libertarem-se mais, a sonharem, a viajarem para fora dos espaço físico onde se encontram; desperta ainda, em muitos deles a vontade de escrever participando com a escrita de poemas ou textos.

São vários os poemas e textos que Filipe usa nas suas sessões mas alguns são quase que obrigatórios, como este “Em linha de conta” de José Carlos Barros com Otília Monteiro Fernandes:

É claro que os poemas se servem de nós, e nos enlouquecem,
Porque nos mostram os outros caminhos.
Porque nos mostram das coisas uma face de sombra.

Ou ainda o poema de José Luís Peixoto “Na Hora de Pôr A Mesa”, que são um golpe no coração, para aqueles que estão longe dos seus e que, deixaram um lugar vazio nas suas mesas de jantar.

(…)
cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

A poesia não tem grades” vai também às escolas, que para além de promover a leitura pretende discutir, alertar e prevenir comportamentos de risco. O mentor do projecto considera, e bem, que este deve ser levado não só às prisões, mas apresentado e trabalhado com famílias, crianças e jovens em risco, ou seja a montante dos problemas, antes de surgirem as situações que conduzem as pessoas ao lado de dentro.

E porque, no nosso universo capitalista é preciso um combustível chamado dinheiro, para fazer voar um sonho, Filipe Lopes convidou alguns escritores para, tendo em mente a palavra dentro (no sentido mais abstracto possível) escrevessem alguns textos, para dar forma a um livro, de maneira a ajudar a financiar e promover o projecto. No livro, “O Lado de Dentro do Lado de Dentro”, podem encontrar originais de  Afonso Cruz, Alice Vieira, André Gago, Catarina Fonseca, Cristina Silveira de Carvalho, Delmar Maia Gonçalves, Filipa Leal, Frederico Fezas Vital, Helder Moura Pereira, Inês Fonseca Santos, Joaquim Cardoso Dias, José Mário Silva, José Carlos Barros, Nuno Garcia Lopes, Pedro Paulo Câmara, Richard Zimler, Samuel Pimenta e fotografias de Duarte Belo e Rowan Schelten.

“ama o teus sonhos como o teu próximo
ou como os sonhos o teu próximo
mas se o teu próximo não tiver sonhos
convém mandar o teu próximo para muito longe
donde não te possa contaminar. (…)

“Um límpido silêncio”, de Alice Vieira.

E a poesia, como qualquer outra forma de arte, tem este poder, de emocionar, de fazer sonhar, de ser inclusiva; de mudar a vida das pessoas e a forma como as pessoas olham para a vida; de sublimar o caos dentro de nós; de mudar o lado de dentro, de todos nós.

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