Porto de desencontro

por Romão Rodrigues,    7 Novembro, 2020
Porto de desencontro
Fotografia de Bruno Martins / Unsplash
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“Meu capitão já é hora de partir e levantar ferro
Não me quero ir embora, diga que foi ao meu enterro”

Carlos Tê/ Rui Veloso

Os factos ditam o arranque textual. Quando a palavra “tarado” nos ribomba os tímpanos, recrudesce a sensação de insanidade desenvolver algum sentimento de compaixão e benevolência sobre a espécie visada. Parte-se do princípio através do qual a franja social não possui mérito e respeito algum; segue-se a demanda pelo enxovalho público à volta de um pelourinho em ótimo estado e estudam-se, com pressa ligeira, as técnicas do período inquisitório de modo a que as acendalhas debitadas pela população que se junta por mero regalo, através da fricção com a atmosfera comburente, sejam a fogueira onde ardam as veleidades.

Clichê – para toda a regra, existe uma exceção.

O “ninfomusical” escondido atrás do primeiro parágrafo é Carlos Tê, letrista e antigo companheiro de Rui Veloso. Por ordem de importância, assume-se como tripeiro e portista, descende de uma família essencialmente operária e nasceu na Cedofeita (Porto) em meados dos anos 50.

Desde cedo, o autodidatismo. Os livros e a sétima arte, descortinados nos finais da década de 60, foram os órgãos propulsores responsáveis pelo oxigenar das entranhas, com o deslumbramento provocado pelas palavras e pelo seu significado. O dicionário era o manuscrito sagrado ao qual recorria com frequência, sempre que a labuta no escritório o permitisse. A escolaridade sucumbiu à passagem do (atual) quinto ano, permaneceu o “bichinho” pela Língua Portuguesa. Em 1980, período que findou a permuta de empregos e a aventura em Paris como pintor, ingressa na Faculdade de Letras do Porto e conclui o curso de Filosofia.

1976 sinaliza onde letra e melodia se fundem: Rui Veloso cruza-se no seu destino. Carlos “Tarado Musical”, epíteto pelo qual era designado no seio da proximidade das suas relações humanas e afetivas, salvaguardou e extrapolou o fascínio pela música desde muito cedo. Primeiramente, depositou diversas sementes no terreno (ainda infértil) em língua inglesa, mas regou e humidificou-o num escrito pátrio. Urgia provar que o cânone do Rock N’ Roll não adentrava por rotas lusitanas; da brincadeira, germina a primeira semente capaz de se transformar em flor e fruto, simultaneamente: Chico Fininho, cheio de speed… Em 1977, não se falava só do PREC. Pelo menos nas ruelas e calçadas do Porto, não.

A máquina do Casino sofreu um puxão na alavanca: o ecrã transpareceu álcool, fumos e um conjunto de letras capazes de formar o álbum urdido sem a intenção de trocar impressões com o sucesso. Reinava a pura inocência, as diversas possibilidades e liberdades recém-conquistadas mascaradas em sonhos e o apetite pela transgressão – por mínima que fosse. Ar de Rock superou as expectativas, caiu no goto da Valentim de Carvalho, da Crítica e da geração que fervilhava interiormente e aguardava, através da onda média do negro do rádio de pilhas, a explosão musical na língua mãe.

De um momento para o outro, o frontman do Porto, o menino magricela e com óculos fundo de garrafão, era conhecido a nível nacional e objeto para toda e qualquer entrevista: estabelecia-se apenas uma conversa com a estrutura rítmica e melódica, quanto muito com o adorno musical e relegava-se o lirismo, a ponte entre o sujeito poético e a poesia: Carlos Tê entrou em cena e foi ofuscado pela luz dos holofotes quando Rui Veloso penetrou o estado de saturação. O letrista – neste caso – não foi educado a cruzar a linha que separa o backstage da fugacidade da fama. Os anos ajudaram-no a conviver com esse receio, moldando-o à sua personalidade.

O tesouro mais bem-guardado de Rui Veloso é Carlos Tê. Se o vocalista inunda as gerações de canções intemporais e erige uníssonos, projetando-os diante da boçalidade, o organizador literário funde sentimentalismo e racionalismo numa panela, remexe-a com vivências de infância, com opiniões políticas bem disfarçadas e imparciais e com temas que no Portugal de 80 só davam vontade de colocar a mão à frente da boca, como as drogas e a prática de sexo. Em matérias de sensacionismo não me assemelho a Fernando Pessoa, mas creio que, à data, Carlos Tê era o Easy RIder hábil no percorrer e na leitura de mentes da juventude de então, a voz de fundo que proferia o que muitos tencionavam expelir, mas poucos ou nenhuns tinham a audácia necessária para dizer, para fazer “despir o tal vestido” narrado na canção.

A dupla beatle portuguesa – Lennon/ McCartney como termo de comparação – entrou em estado de declínio, após a saída de Tê. Numa entrevista a José Fialho Gouveia, em 2009, quando questionado sobre Rui Veloso, afirmou que era possível a conceção de uma boa música, mesmo alicerçada por uma composição lírica degradante, porque uma boa voz, um bom arranjo e uma boa melodia eram suficientes. “Ópio, maldito ópio” era o que diria se o vício fosse reconhecível…

A citação inicial traduz, no limite, a segregação do navio. O Capitão abandonou o barco, o marujo ficou sem orientação.

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