Paul Otlet, um dos pais da ciência da informação

por Lucas Brandão,    30 Novembro, 2017
Paul Otlet, um dos pais da ciência da informação
Paul Otlet e a sua equipa
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Perante uma fase de explosão documental, Paul Otlet, jurista de formação, foi um dos mais dedicados e afincados na prática de organização e de estruturação informacional. A ainda incipiente Ciência da Informação conheceu uma importante base conceptual no seu trabalho, que se debruçou na classificação de todo o fluxo da informação criada e inventariada, numa espécie de prenúncio da era desta. Para além daquilo que criou, não se esqueceu de o passar para lá dos escritos e dos livros, envidando esforços, ao lado de Henri La Fontaine, Nobel da Paz de 1913, constituir organizações e associações para catapultar os seus ambiciosos planos de cobrir toda a documentação mundial.

Paul Marie Ghislain Otlet nasceu a 23 de agosto de 1864, em Bruxelas. O belga licenciar-se-ia em Direito, na Université Libre de Bruxelles. Porém, o exercício da profissão na qual se havia graduado nunca o encantou, debruçando o seu interesse no meio através do qual aprendia e fazia uso da sua disciplina profissional: a bibliografia. Dois anos após se licenciar, em 1892, escreveria um ensaio sobre algumas considerações quanto ao armazenamento de informação, apontando que os livros não eram o melhor método para esta prática pela possível arbitrariedade de cada autor em organizá-la. Como sugestão de solução, propôs a existência de cartões com informação, capazes de serem manuseáveis e manipuláveis à luz de um devido método classificativo, permitindo traçar uma sinopse quanto ao conhecimento associado.

Um ano antes, havia conhecido o igualmente advogado e belga Henri La Fontaine, com quem partilhava o interesse pela bibliografia. Nesse sentido, seriam incorporados na Societé des Sciences Sociales et Politiques em 1892, de forma a criar um rol de bibliografias associadas às várias ciências sociais existentes. Conseguindo-o efetivar em três anos, foi no final deste período que deram conta da existência da Dewey Decimal Classification, datada de 1876, e criada pelo norte-americano Melvil Dewey. Esta estruturação já contava com a possibilidade de assimilar literatura recém-chegada, classificando a bibliografia com a sua localização relativa e indexação relativa, abrangendo uma série de áreas do saber, a partir do contributo direto de cientistas de diferentes ramos. O objetivo dos dois belgas foi de expandir a sua cobertura para incluir a proposta de Otlet, no ensaio que havia publicado. Com a devida autorização de Dewey, que solicitou que não fosse feita em inglês procederam a essa alteração, e criaram, subsequentemente, a Universal Decimal Classification, fundada e homologada em 1904, e publicada, por fim, em 1907.

Esta classificação bibliográfica conseguiu, desta feita, reforçar as ligações entre áreas de conhecimento, com uma base analítico-sintética, passível de interligar diferentes áreas. O sistema de classificação conta, desta feita, referenciado por uma notação algébrica, assessorado por um vocabulário detalhado, e com uma sintaxe que permite recuperar informação e indexar conteúdo em coleções de grande número. A classificação, a partir dos seus códigos, vê-se capacitada de descrever qualquer tipo de documento, desde material fotográfico, videográfico ou fonográfico, em qualquer nível de detalhe. Como se trata de uma estrutura tendencialmente internacional, viu-se publicada em quase quarenta idiomas, e é, ainda nos dias de hoje, modificada e atualizada, adaptando-se aos novos contextos de escalabilidade e de meios tecnológicos à disposição.

Seguidamente, em 1895, o europeu viria a fundar o Institut International de Bibliographie, que se tornaria na International Federation for Information and Documentation (FID). Isto seria o mote para a fundação da Ciência da Documentação, que estabeleceria uma base de afirmação da emergente Ciência da Informação, para além dos originários casos de estudos do registo e recuperação de informação. A sua constituição permitiu trabalhos multidisciplinares crescentes, de forma a criar indexes científicos para a organização literária de várias áreas do saber. Os desafios vindouros, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, dariam lugar a uma nova vaga de documentalistas, com uma gama de desafios distintos, num cenário de explosão informacional. No entanto, a filosofia de integração da tecnologia permaneceu sempre muito criteriosa, atendendo sempre a objetivos sociais muito específicos, perante um desenvolvimento histórico muito centrado na unidade organizacional e veiculadora da informação.

Paul Otlet no seu escritório em 1934

Essa mundividência mais global nunca permaneceu adormecida para o par de belgas, que perspetivavam a informação, em conjunto com as tecnologias de informação, como instrumentais na constituição de uma “Sociedade da Informação”. A quantidade de instituições que seriam fundadas eventualmente destinou-se a essa envolvência dos vários agentes internacionais, naquilo que era uma cooperação na estandardização da classificação, para além da própria produção e comunicação de informação. Estruturas, como a Liga das Nações e as Nações Unidas, assumem uma preponderância global, e ajudaram a sustentar a aplicação universal das propostas de Otlet e de La Fontaine. Tudo isto seria a constatação física daquilo que viria a ser a própria World Wide Web, para além da sua proposta documental, em que via o conhecimento versado em unidades documentais interligado através de hiperligações, motores de busca, acessos remotos e até em redes sociais. Em contexto de Guerra Mundial, o trabalho de Otlet seria refreado, embora nunca prescindido, tendo viajado para os Estados Unidos em busca de financiamento para os seus projetos. De regresso à Europa, tentou incutir os valores de paz, visando a constituição das tais instituições multinacionais para esse fim.

Para além disto, viria a apresentar uma edificação de uma coleção de documentos estruturados, que incluía folhas e cartões estandardizados, incorporados em indexes hierarquizados e acessíveis através de serviços de recuperação de informação. Estes foram postulados trabalhados e escrutinados pela futura American Society for Information Science and Technology. Ainda em 1895, o duo de belgas tentou transpor para a prática essa ferramenta, que coligia cartões de indexação, para catalogar factos. Isto tornar-se-ia no Repertoire Bibliographie Universel, que alcançaria as 400 000 mil entradas, e a partir do qual Otlet construiria um negócio, ao responder a questões endereçadas pelos interessados em troca de um dado valor monetário. Assim, e de forma a suprir as suas necessidades informacionais, enviava cópias dos cartões relevantes para as questões colocadas, numa espécie de motor de pesquisa analógico. Em 1912, a média de respostas estimava-se encontrar nas 1500 perguntas por ano, mesmo que algumas delas originassem mais de cinquenta resultados. A sua portabilidade revelou-se impossível naquilo que era a transportação de um acervo numeroso de cópias para várias cidades de referência do globo.

1895 não deixou de ser marcante, pois foi o ano onde surgiu um dos conceitos pelos quais a dupla de Otlet e La Fontaine ficaram conhecidos, sendo esta a proposta de um Mundaneum, uma espécie de palácio mundial. Naquilo que seria uma futura e efetiva construção no ano de 1910, com o consentimento do governo belga, situando-se na ala esquerda do Palais du Cinquantenaire, em Bruxelas, espelho aquilo que era o objetivo de consagrar todo o conhecimento produzido no mundo, classificando-o de acordo com a sua Classificação Decimal Universal. Para formalizar esta proposta, organizaram uma conferência internacional entre associações dos vários pontos do mundo, originando a Union of International Associations (UIA), que passaria a fazer parte, futuramente, da UNESCO.

Referenciado como um marco na história da reunião e gestão de dados, desde cedo que foi encarado como uma “cidade do mundo”, em que coligisse significados e conhecimento. O espaço passaria a estar inativo em 1934, quando alcançou as quase 15 milhões de unidades, incluindo ficheiros vários, desde cartas, artigos, reportagens e imagens, e integrando vários empregados que saíram fragilizados da crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. O sonho de Otlet só seria consumado muito após a sua morte, a 10 de dezembro de 1944, nos fins da Segunda Guerra Mundial, com a fundação da Internet, pouco tempo depois de La Fontaine, que partira em 1943. Até lá, viria a perder fulgor, perante o surgimento de outros nomes relevantes, como os cientistas Vannevar Bush ou Douglas Engelbart. As instituições que vinha fundando até então viram-se renomeadas e reenquadradas em novas competências e contextos, pelo que o Mundaenum foi visto como um projeto pouco apropriado e desconexo da realidade contemporânea.

Isto viria no encalço da visão utópica de Otlet sobre uma cidade mundial, capaz de criar a paz e prosperidade universal, inspirada numa série de obras do escultor Hendrik Christian Andersen e do arquiteto francês Ernest Hébrard, projetando um World Centre of Communication, em 1913. Para este futuro, não abdicava de considerar, como principal premissa, a existência de uma rede de conhecimento, explorando as emergentes formas de comunicação, como o rádio e o microfilme. Aliás, à luz destas invenções, considerava que os novos meios seriam providenciais na redescoberta documental, capazes de transmitir sentidos e de gerar perceções, a serem compreendidas e geridas na própria classificação bibliográfica. Assim, concebeu e dialogou com vários arquitetos para a verdadeira projeção de um espaço com esse cariz, chegando a receber um esboço de Le Corbusier, no ano de 1929. Aquilo que unia os vários projetos incluía a existência de um Museu Mundial, de uma Universidade Mundial, de uma Biblioteca Mundial, de um Centro de Documentação, de Escritórios para as Associações Internacionais, e Embaixadas para todos os países.

Paul Otlet procurou, a partir da classificação de tudo aquilo que é documento, unir o mundo, e colocá-lo numa dinâmica cooperativa e unificada. Perdendo fulgor no pós-Primeira Guerra Mundial, apesar dos intentos de fortalecer a paz, Otlet seria reerguido nos anos 90, num processo de redescoberta e de surgimento da World Wide Web. “Traité de Documentation” (1934), obra que consagra todas as idealizações do belga, seria reeditada numa série de países, e recebeu um novo ímpeto académico. A isto, juntou-se a criação de um novo Mundaenum, na cidade de Mons, em plena Bélgica. Perante um positivismo voltado para um mundo em integração e cooperação, celebram-se, hoje, as ideias revigoradas e revigorantes de um visionário devidamente documentado e classificado.

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